Uma vez um amigo em quem eu estava dando uns beijos me disse que um dos motivos porque ele estava terminando o nosso rolo naquele dia era que, segundo ele, eu ainda não tinha superado um ex-namorado abusador. Completamente apaixonada por aquele exemplar absolutamente comum de “homem bom” que estava na minha frente e finalmente certa da reciprocidade, fiquei confusa com aquela acusação. Graças à medicação (e à “automedicação”) que eu tomava na época, nem lembrava direito da cara do ex. Como assim? Aquilo era passado! Do que ele estava falando? O que eu queria era ele, ali, agora. Não estava claro o suficiente? O problema era que ele, infelizmente, queria montar a família da propaganda de margarina e já tinha arquitetado o plano completo. Definitivamente, eu não cabia naquilo que era meu pior pesadelo. Mas quem estava pensando no meu ex era ele, não eu!
— Você fala o tempo todo de violência sexual. Você não superou aquele cara!
Eu fiquei em choque.
Como muitos “homens bons” do meu entorno que acabaram casando e tendo filhos e seguindo aquele script todo de família feliz — e eu acredito que esses amigos estejam fazendo o melhor que podem dentro do que eles escolheram para si e para suas parceiras —, esse meu amigo nunca tinha se ligado da pervasividade da violência sexual, nem mesmo quando me contava chocado as experiências ruins das suas amigas. Do cunhado ao ex-peguete, do meu pai ao marido da minha amiga, é só quando esses “homens bons” começam a passar perrengue intimamente com uma mulher, em primeiríssima mão, que muitos deles se dão conta disso. A maioria deles na verdade nem chega a ser dar conta das piores partes do que isso significa, já que eles, supostamente, não tomam parte disso. Mas quero crer que todos esses “homens bons”, principalmente aqueles pais de meninas, com certeza um dia vão chegar a essa dura conclusão. Pais presentes que espero que eles todos sejam (e, ainda, meus amigos), eventualmente eles acabam descobrindo que não sou eu que falo de violência sexual o tempo todo — é que a violência sexual acontece o tempo todo.
Para alguns desses “homens bons”, o problema está justamente em não seguir esse percurso de fazer e manter uma família. Meu pai certamente acredita nisso, meu cunhado, primos e outros aparentados bem ajustados acreditam nisso, e aquele mocinho adorável com quem eu trocava beijos em meados da década passada provavelmente também. Se cada homem se dedicar a ser bom, tiver sua própria esposinha e cuidar bem dela, todo mundo sai ganhando. E a maioria deles tenta, justamente porque nas Condições Ideais de Temperatura e Pressão, a família (por enquanto) ainda é o melhor arranjo social possível (principalmente para eles, os homens, independente de serem bons ou não). Não que não possa funcionar para as mulheres desses “homens bons”, mas estamos falando de probabilidade aqui. É tão natural para os “homens bons” que suas esposas possam tirar anos de suas vidas para se dedicar inteiramente — ou majoritariamente, ou significativamente, ou pelo menos com uma robusta rede de apoio ao seu redor para dar conta do que ela não puder — ao cuidado dos filhos, que muitos deles nunca imaginaram que, na média, não seja assim que acontece. Até que se prove o contrário, eu acredito que esses “homens bons” do meu entorno realmente amem e honrem e protejam as suas esposas, como firmaram no pacto do dia do seu casamento. O problema é que, mesmo nas condições mais ideais, as mulheres são colocadas em desvantagem dentro do casamento. Quando um homem ama uma mulher (em geral, ele não ama), se casa com ela (em geral, por dever) e a engravida (em geral, apenas uma consequência esperada do arranjo todo, ainda que não necessariamente nessa ordem), na imensa maioria das vezes quem perdeu foi ela: game over, mais uma guerreira abatida.
Creio que as esposas desses “homens bons”, acusadas por vezes de “privilegiadas” por poder abrir mão de todo o resto de suas vidas para se dedicar somente à árdua missão de trazer outro ser humano a este Vale de Lágrimas e guiá-lo por um caminho mais ou menos decente — uma responsabilidade tão absurdamente aterradora para mim que nunca me julguei digna da tarefa; tem outros trofeu —, provavelmente estão vivendo a melhor vida possível dentro do que as suas escolhas permitiram. Espero que elas possam ter a força de vontade que eu não tenho e que é necessária para criar seres humanos razoáveis, e as ajudo no que for sempre que possível. Tento ser uma influência positiva nas vidas das mulheres casadas com os “homens bons” do meu entorno mesmo que as suas suspeitas de que eu seja uma daquelas forças dedicadas a destruir essa estrutura que supostamente protege a nós mulheres da violência sexual inerente à dominação masculina — a família — estejam corretas.
Creio e espero, e escrevo a tudo isso como um sortilégio, um feitiço, uma profissão de fé. Fé de que essas mulheres — tanto as próximas quanto as distantes, por quem me preocupo às vezes até sem conhecer direito —, esposas desses “homens bons”, possam ter a melhor experiência possível dentro desse formato antinatural de microcomunidade que vende um regime de co-dependência econômica disfarçado de contrato afetivo que, se não fossem as reformas lentas e de oportunidade nas leis feitas com muita insistência de um grupo relativamente pequeno de mulheres estridentes e teimosas, necessariamente deixaria essas mulheres em ainda mais desvantagem.
Porque, diante da ubiqüidade da violência sexual que a manutenção da dominação masculina exige, tudo o que eu posso ter nos “homens bons” do meu entorno — desses que escolheram casar aos que escolheram festar, dos em quem eu nem encosto aos com quem me relaciono intimamente — é fé. Se fosse depender das evidências, eles estavam lascados no meu conceito.
O problema é que a definição de fé é justamente acreditar em algo que não possui base na realidade. Acreditar é dar crédito adiantado e é, por isso, dar um voto de confiança. É um investimento. Acredito que, por mais que discordem ou achem minhas ideias radicais demais — elas nem são minhas e muito menos novas, mas são sim fortes —, os “homens bons” do meu entorno tentem entender o que eu digo e, por isso, insistem nesse vínculo. Creio que planto nesses “homens bons” uma sementinha de reflexão. Creio que a meia dúzia deles que me lê e ouve quando insisto em falar de violência sexual não faça grupos secretos onde trocam prints e caçoam das minhas falas.
Acredito que alguns homens possam estar fazendo esse tipo de coisa exatamente agora em algum lugar da internet, mas não os “homens bons” que são meus amigos. Os “homens bons” que são meus amigos não trocam diálogos onde dizem:
— Olha ela ali de novo esperneando, não cansa? Supera esse macho que te fez mal, amiga! Qual deles? Qualquer um e todos eles! A vida é melhor que isso e você sabe. Arruma um “homem bom” (ou até uma mulher, veja só) e casa bonitinho que isso pára de acontecer!
Não os “homens bons” que eu conheço. Eles não. Nem todo homem.
Outro dia, em várias ocasiões, eu estava em um ônibus relativamente vazio e um cara desviou do seu caminho original para propositalmente se esfregar em mim. Outro dia, um homem em quem tentei dar uns beijos teve dificuldade de manter o pirulito ereto porque não pôde praticar algum tipo de violência supostamente consentida e de mentirinha contra mim, já que eu, tão pudica, disse “não”. Outro dia, mas de noite, quando eu trabalhava no jornal, um homem só desistiu de me assediar na rua quando o ameacei de volta com uma lapiseira de aço afiadíssima que podia sim fazer um estrago nele. Outro dia, na mesma época mas à tarde, um cara me agarrou do nada na rua no meu intervalo do trabalho e as pessoas em volta riram — quero crer que é porque fui ágil e consegui escapar, mas estar coberta dos pés à cabeça com um sobretudo não me protegeu. Outro dia, no trabalho, um colega achou que podia colocar as mãos nos meus ombros e ficar com elas ali pelo tempo que quisesse; ele não sabia se podia, mas estava sendo muito educado, decidiu que podia e o fez. Outro dia, quando eu era ainda uma jovem rebelde explorando a noite curitibana, um homem homossexual passou a mão pelo meu corpo em um bar a caminho do banheiro simplesmente porque achou que, se ele dissesse que eu estava linda, ele podia. Outro dia, muitos anos atrás, o tal do ex-namorado supracitado abusou de mim enquanto eu estava chapada de remédio para dormir. Outro dia, esse mesmo ex-namorado também me estuprou sóbria, para se certificar de que eu tinha aprendido a lição de que eu era dele e apenas dele. Outro dia, eu tentei ver o noticiário local em vários horários diferentes ao longo de uma semana, mas em todos eles havia a notícia de uma mulher morta ou abusada pelo parceiro — eu só queria saber a previsão do tempo, não receber uma descarga de cortisol e adrenalina gratuitamente às sete da noite! Outro dia, no ano passado, um revisor de um periódico disse, na minha última tentativa obstinada de publicar algo sobre mulheres no esquema de revisão por pares oficial da academia, que eu não poderia escrever sobre a natureza sexual da dominação masculina que massacra mulheres todos os dias o tempo inteiro porque essa era uma ideia ultrapassada e perigosa, e que eu corria o risco de ferir os sentimentos dos homens. Outro dia, muitos anos atrás, milhares de homens — e mulheres que acreditavam que estariam protegidas da violência masculina se estivessem do lado que a perpetra — mudaram completamente a forma como eu uso a internet ao inundar minha timeline com violência sexual gráfica e verbal de todo tipo porque eu estava, mais uma vez, teimosamente, falando de violência sexual. Outro dia, o escrivão da delegacia onde tentei denunciar esse ataque online protegeu os meus assediadores e me coagiu a retirar a queixa; os meus assediadores saíram no jornal como blogueiros inovadores e disruptivos semanas depois. Outro dia, semana passada, um médico me tocou de forma inapropriada e manteve a técnica que acompanhava o procedimento ocupada anotando termos técnicos que ele não precisava ter usado só para que ela não visse que ele estava quase se deitando por cima do meu tórax nu — e eu, uma mulher independente e bem informada, só travei e dissociei, e — pior! — ainda não sei se é realmente possível fazer algo a respeito disso. Outro dia, também na semana passada, um velho cuspiu no chão à minha frente e rosnou em minha direção porque eu não estava sendo feminina o suficiente para que ele pudesse apreciar. Outro dia, antes da pandemia, um homem que se veste diferentinho me reconheceu da internet numa festa em outra cidade e juntou um grupo de amigos para tentar me intimidar porque, entre outras coisas, eu falo o tempo todo da violência de base sexual perpetrada pelo grupo de homens do qual ele faz parte. Eles só não foram adiante porque eu estava acompanhada de “homens bons” que, por acaso, também eram amigos deles; mas esses “homens bons” foram todos mais tarde devidamente alertados sobre a gravidade dos meus crimes e alguns deles até pararam de falar comigo. Ufa, que sorte! Será que o problema sou eu?
Sei que cometo umas ousadias que podem ser consideradas um convite aos homens não-bons, como andar sozinha à noite pelo centro da cidade ou me vestir exibindo a polpa da bunda quando faz calor o suficiente, mas duvido que seja isso. Por mais que esse parágrafo acima seja apenas um breve relato da minha própria experiência pessoal de existir nesse corpo de fêmea em um mundo que odeia mulheres nos últimos quinze anos, eu não o escrevi para me fazer de vítima. O que eu tentei ali, nesse meu modo meio truncado de prosa, foi fazer poesia. Juro! Essas experiências são reais e pessoais, não inventei nada. Esse texto é justamente um exercício para tentar processar as mais recentes delas. São experiências comuns a mulheres do mundo todo e de todo tipo, considerando-se, claro, as diferenças de contexto e cultura e recortes e eteceteras. São experiências comuns tanto a mulheres que foram levadas a decidir que a segurança sufocante do casamento valia mais a pena ou era mais cômoda que a incerteza que vem com a liberdade quanto às que escolheram a liberdade ou acabaram escolhidas por ela. São experiências que evidenciam que não importa em quantas camadas de privilégio ou disfarce uma mulher se envolva, dificilmente elas vão esconder o fato de ser mulher e de ser subjugada em um mundo que se estrutura sobre a nossa exploração.
Se eu falo de violência sexual o tempo todo é porque ela está acontecendo agora em algum lugar, e vai acontecer depois, e já aconteceu antes, e vai continuar acontecendo, e de novo e de novo e de novo. Falo porque ela acontece comigo e com todas as mulheres todos os dias, mesmo que a gente insista em ignorá-la, mesmo que às vezes a gente nem a perceba. Falo de violência sexual o tempo todo porque o tempo todo sou lembrada que ela existe, e me acontece, e acontece às minhas iguais, e não é a existência de um punhado de “homens bons” que vai resolvê-la, muito menos contrair casamento com algum deles. Falo de violência sexual o tempo todo porque uma vez que a gente treina os nossos olhos para enxergá-la, quando aprendemos a parar de ignorá-la, é impossível desver.
Falo de violência sexual o tempo todo porque sou incapaz de não falar, porque me desespera não falar, porque não poder pelo menos cometer o singelo ato de apontar para ela me deixa doida da cabeça e me mostra o quanto eu, individualmente, sou um nadinha de nada diante disso que nos acontece a nós mulheres. Falo de violência sexual porque se eu não puder falar — e estou ciente de todas as pontes que queimei ao longo da vida por insistir nisso —, serei uma pessoa a menos falando, e tão poucas de nós pode realmente falar abertamente sobre ela.
Se existe um lado bom em resistir à violência sexual perpetrada diariamente pelos homens é que ela afia a nossa faca interior. A gente vai ficando mais espertinha com o passar do tempo, ainda que nem sempre consiga controlar nossa resposta naquele circuito do cérebro que decide se a gente vai fugir, bater ou congelar. Às vezes a gente congela e se frustra por isso, mas talvez seja melhor que reagir e passar por louca naquele momento específico. É nisso que quero acreditar.
Se falo de violência masculina o tempo todo, não é por ser incapaz de superar os seus efeitos na minha vida. Mas justamente porque a tenho superado e sobrevivido a ela com certo sucesso todos os dias, mesmo naqueles em que não consigo escapar das suas garras.