Monotemática

Uma vez um amigo em quem eu estava dando uns beijos me disse que um dos motivos porque ele estava terminando o nosso rolo naquele dia era que, segundo ele, eu ainda não tinha superado um ex-namorado abusador. Completamente apaixonada por aquele exemplar absolutamente comum de “homem bom” que estava na minha frente e finalmente certa da reciprocidade, fiquei confusa com aquela acusação. Graças à medicação (e à “automedicação”) que eu tomava na época, nem lembrava direito da cara do ex. Como assim? Aquilo era passado! Do que ele estava falando? O que eu queria era ele, ali, agora. Não estava claro o suficiente? O problema era que ele, infelizmente, queria montar a família da propaganda de margarina e já tinha arquitetado o plano completo. Definitivamente, eu não cabia naquilo que era meu pior pesadelo. Mas quem estava pensando no meu ex era ele, não eu!

— Você fala o tempo todo de violência sexual. Você não superou aquele cara!

Eu fiquei em choque.


Como muitos “homens bons” do meu entorno que acabaram casando e tendo filhos e seguindo aquele script todo de família feliz — e eu acredito que esses amigos estejam fazendo o melhor que podem dentro do que eles escolheram para si e para suas parceiras —, esse meu amigo nunca tinha se ligado da pervasividade da violência sexual, nem mesmo quando me contava chocado as experiências ruins das suas amigas. Do cunhado ao ex-peguete, do meu pai ao marido da minha amiga, é só quando esses “homens bons” começam a passar perrengue intimamente com uma mulher, em primeiríssima mão, que muitos deles se dão conta disso. A maioria deles na verdade nem chega a ser dar conta das piores partes do que isso significa, já que eles, supostamente, não tomam parte disso. Mas quero crer que todos esses “homens bons”, principalmente aqueles pais de meninas, com certeza um dia vão chegar a essa dura conclusão. Pais presentes que espero que eles todos sejam (e, ainda, meus amigos), eventualmente eles acabam descobrindo que não sou eu que falo de violência sexual o tempo todo — é que a violência sexual acontece o tempo todo.

Para alguns desses “homens bons”, o problema está justamente em não seguir esse percurso de fazer e manter uma família. Meu pai certamente acredita nisso, meu cunhado, primos e outros aparentados bem ajustados acreditam nisso, e aquele mocinho adorável com quem eu trocava beijos em meados da década passada provavelmente também. Se cada homem se dedicar a ser bom, tiver sua própria esposinha e cuidar bem dela, todo mundo sai ganhando. E a maioria deles tenta, justamente porque nas Condições Ideais de Temperatura e Pressão, a família (por enquanto) ainda é o melhor arranjo social possível (principalmente para eles, os homens, independente de serem bons ou não). Não que não possa funcionar para as mulheres desses “homens bons”, mas estamos falando de probabilidade aqui. É tão natural para os “homens bons” que suas esposas possam tirar anos de suas vidas para se dedicar inteiramente — ou majoritariamente, ou significativamente, ou pelo menos com uma robusta rede de apoio ao seu redor para dar conta do que ela não puder — ao cuidado dos filhos, que muitos deles nunca imaginaram que, na média, não seja assim que acontece. Até que se prove o contrário, eu acredito que esses “homens bons” do meu entorno realmente amem e honrem e protejam as suas esposas, como firmaram no pacto do dia do seu casamento. O problema é que, mesmo nas condições mais ideais, as mulheres são colocadas em desvantagem dentro do casamento. Quando um homem ama uma mulher (em geral, ele não ama), se casa com ela (em geral, por dever) e a engravida (em geral, apenas uma consequência esperada do arranjo todo, ainda que não necessariamente nessa ordem), na imensa maioria das vezes quem perdeu foi ela: game over, mais uma guerreira abatida.

Creio que as esposas desses “homens bons”, acusadas por vezes de “privilegiadas” por poder abrir mão de todo o resto de suas vidas para se dedicar somente à árdua missão de trazer outro ser humano a este Vale de Lágrimas e guiá-lo por um caminho mais ou menos decente — uma responsabilidade tão absurdamente aterradora para mim que nunca me julguei digna da tarefa; tem outros trofeu —, provavelmente estão vivendo a melhor vida possível dentro do que as suas escolhas permitiram. Espero que elas possam ter a força de vontade que eu não tenho e que é necessária para criar seres humanos razoáveis, e as ajudo no que for sempre que possível. Tento ser uma influência positiva nas vidas das mulheres casadas com os “homens bons” do meu entorno mesmo que as suas suspeitas de que eu seja uma daquelas forças dedicadas a destruir essa estrutura que supostamente protege a nós mulheres da violência sexual inerente à dominação masculina — a família — estejam corretas.

Creio e espero, e escrevo a tudo isso como um sortilégio, um feitiço, uma profissão de fé. Fé de que essas mulheres — tanto as próximas quanto as distantes, por quem me preocupo às vezes até sem conhecer direito —, esposas desses “homens bons”, possam ter a melhor experiência possível dentro desse formato antinatural de microcomunidade que vende um regime de co-dependência econômica disfarçado de contrato afetivo que, se não fossem as reformas lentas e de oportunidade nas leis feitas com muita insistência de um grupo relativamente pequeno de mulheres estridentes e teimosas, necessariamente deixaria essas mulheres em ainda mais desvantagem.

Porque, diante da ubiqüidade da violência sexual que a manutenção da dominação masculina exige, tudo o que eu posso ter nos “homens bons” do meu entorno — desses que escolheram casar aos que escolheram festar, dos em quem eu nem encosto aos com quem me relaciono intimamente — é . Se fosse depender das evidências, eles estavam lascados no meu conceito.


O problema é que a definição de fé é justamente acreditar em algo que não possui base na realidade. Acreditar é dar crédito adiantado e é, por isso, dar um voto de confiança. É um investimento. Acredito que, por mais que discordem ou achem minhas ideias radicais demais — elas nem são minhas e muito menos novas, mas são sim fortes —, os “homens bons” do meu entorno tentem entender o que eu digo e, por isso, insistem nesse vínculo. Creio que planto nesses “homens bons” uma sementinha de reflexão. Creio que a meia dúzia deles que me lê e ouve quando insisto em falar de violência sexual não faça grupos secretos onde trocam prints e caçoam das minhas falas.

Acredito que alguns homens possam estar fazendo esse tipo de coisa exatamente agora em algum lugar da internet, mas não os “homens bons” que são meus amigos. Os “homens bons” que são meus amigos não trocam diálogos onde dizem:

— Olha ela ali de novo esperneando, não cansa? Supera esse macho que te fez mal, amiga! Qual deles? Qualquer um e todos eles! A vida é melhor que isso e você sabe. Arruma um “homem bom” (ou até uma mulher, veja só) e casa bonitinho que isso pára de acontecer!

Não os “homens bons” que eu conheço. Eles não. Nem todo homem.


Outro dia, em várias ocasiões, eu estava em um ônibus relativamente vazio e um cara desviou do seu caminho original para propositalmente se esfregar em mim. Outro dia, um homem em quem tentei dar uns beijos teve dificuldade de manter o pirulito ereto porque não pôde praticar algum tipo de violência supostamente consentida e de mentirinha contra mim, já que eu, tão pudica, disse “não”. Outro dia, mas de noite, quando eu trabalhava no jornal, um homem só desistiu de me assediar na rua quando o ameacei de volta com uma lapiseira de aço afiadíssima que podia sim fazer um estrago nele. Outro dia, na mesma época mas à tarde, um cara me agarrou do nada na rua no meu intervalo do trabalho e as pessoas em volta riram — quero crer que é porque fui ágil e consegui escapar, mas estar coberta dos pés à cabeça com um sobretudo não me protegeu. Outro dia, no trabalho, um colega achou que podia colocar as mãos nos meus ombros e ficar com elas ali pelo tempo que quisesse; ele não sabia se podia, mas estava sendo muito educado, decidiu que podia e o fez. Outro dia, quando eu era ainda uma jovem rebelde explorando a noite curitibana, um homem homossexual passou a mão pelo meu corpo em um bar a caminho do banheiro simplesmente porque achou que, se ele dissesse que eu estava linda, ele podia. Outro dia, muitos anos atrás, o tal do ex-namorado supracitado abusou de mim enquanto eu estava chapada de remédio para dormir. Outro dia, esse mesmo ex-namorado também me estuprou sóbria, para se certificar de que eu tinha aprendido a lição de que eu era dele e apenas dele. Outro dia, eu tentei ver o noticiário local em vários horários diferentes ao longo de uma semana, mas em todos eles havia a notícia de uma mulher morta ou abusada pelo parceiro — eu só queria saber a previsão do tempo, não receber uma descarga de cortisol e adrenalina gratuitamente às sete da noite! Outro dia, no ano passado, um revisor de um periódico disse, na minha última tentativa obstinada de publicar algo sobre mulheres no esquema de revisão por pares oficial da academia, que eu não poderia escrever sobre a natureza sexual da dominação masculina que massacra mulheres todos os dias o tempo inteiro porque essa era uma ideia ultrapassada e perigosa, e que eu corria o risco de ferir os sentimentos dos homens. Outro dia, muitos anos atrás, milhares de homens — e mulheres que acreditavam que estariam protegidas da violência masculina se estivessem do lado que a perpetra — mudaram completamente a forma como eu uso a internet ao inundar minha timeline com violência sexual gráfica e verbal de todo tipo porque eu estava, mais uma vez, teimosamente, falando de violência sexual. Outro dia, o escrivão da delegacia onde tentei denunciar esse ataque online protegeu os meus assediadores e me coagiu a retirar a queixa; os meus assediadores saíram no jornal como blogueiros inovadores e disruptivos semanas depois. Outro dia, semana passada, um médico me tocou de forma inapropriada e manteve a técnica que acompanhava o procedimento ocupada anotando termos técnicos que ele não precisava ter usado só para que ela não visse que ele estava quase se deitando por cima do meu tórax nu — e eu, uma mulher independente e bem informada, só travei e dissociei, e — pior! — ainda não sei se é realmente possível fazer algo a respeito disso. Outro dia, também na semana passada, um velho cuspiu no chão à minha frente e rosnou em minha direção porque eu não estava sendo feminina o suficiente para que ele pudesse apreciar. Outro dia, antes da pandemia, um homem que se veste diferentinho me reconheceu da internet numa festa em outra cidade e juntou um grupo de amigos para tentar me intimidar porque, entre outras coisas, eu falo o tempo todo da violência de base sexual perpetrada pelo grupo de homens do qual ele faz parte. Eles só não foram adiante porque eu estava acompanhada de “homens bons” que, por acaso, também eram amigos deles; mas esses “homens bons” foram todos mais tarde devidamente alertados sobre a gravidade dos meus crimes e alguns deles até pararam de falar comigo. Ufa, que sorte! Será que o problema sou eu?


Sei que cometo umas ousadias que podem ser consideradas um convite aos homens não-bons, como andar sozinha à noite pelo centro da cidade ou me vestir exibindo a polpa da bunda quando faz calor o suficiente, mas duvido que seja isso. Por mais que esse parágrafo acima seja apenas um breve relato da minha própria experiência pessoal de existir nesse corpo de fêmea em um mundo que odeia mulheres nos últimos quinze anos, eu não o escrevi para me fazer de vítima. O que eu tentei ali, nesse meu modo meio truncado de prosa, foi fazer poesia. Juro! Essas experiências são reais e pessoais, não inventei nada. Esse texto é justamente um exercício para tentar processar as mais recentes delas. São experiências comuns a mulheres do mundo todo e de todo tipo, considerando-se, claro, as diferenças de contexto e cultura e recortes e eteceteras. São experiências comuns tanto a mulheres que foram levadas a decidir que a segurança sufocante do casamento valia mais a pena ou era mais cômoda que a incerteza que vem com a liberdade quanto às que escolheram a liberdade ou acabaram escolhidas por ela. São experiências que evidenciam que não importa em quantas camadas de privilégio ou disfarce uma mulher se envolva, dificilmente elas vão esconder o fato de ser mulher e de ser subjugada em um mundo que se estrutura sobre a nossa exploração.

Se eu falo de violência sexual o tempo todo é porque ela está acontecendo agora em algum lugar, e vai acontecer depois, e já aconteceu antes, e vai continuar acontecendo, e de novo e de novo e de novo. Falo porque ela acontece comigo e com todas as mulheres todos os dias, mesmo que a gente insista em ignorá-la, mesmo que às vezes a gente nem a perceba. Falo de violência sexual o tempo todo porque o tempo todo sou lembrada que ela existe, e me acontece, e acontece às minhas iguais, e não é a existência de um punhado de “homens bons” que vai resolvê-la, muito menos contrair casamento com algum deles. Falo de violência sexual o tempo todo porque uma vez que a gente treina os nossos olhos para enxergá-la, quando aprendemos a parar de ignorá-la, é impossível desver.

Falo de violência sexual o tempo todo porque sou incapaz de não falar, porque me desespera não falar, porque não poder pelo menos cometer o singelo ato de apontar para ela me deixa doida da cabeça e me mostra o quanto eu, individualmente, sou um nadinha de nada diante disso que nos acontece a nós mulheres. Falo de violência sexual porque se eu não puder falar — e estou ciente de todas as pontes que queimei ao longo da vida por insistir nisso —, serei uma pessoa a menos falando, e tão poucas de nós pode realmente falar abertamente sobre ela.

Se existe um lado bom em resistir à violência sexual perpetrada diariamente pelos homens é que ela afia a nossa faca interior. A gente vai ficando mais espertinha com o passar do tempo, ainda que nem sempre consiga controlar nossa resposta naquele circuito do cérebro que decide se a gente vai fugir, bater ou congelar. Às vezes a gente congela e se frustra por isso, mas talvez seja melhor que reagir e passar por louca naquele momento específico. É nisso que quero acreditar.

Se falo de violência masculina o tempo todo, não é por ser incapaz de superar os seus efeitos na minha vida. Mas justamente porque a tenho superado e sobrevivido a ela com certo sucesso todos os dias, mesmo naqueles em que não consigo escapar das suas garras.

Afinal, existe “ideologia de gênero”?

Antes de começar, é importante em um primeiro momento pensar que o contexto onde se costuma usar essa expressão no Brasil é um tanto diferente do contexto de outros países. Em lugares como o Reino Unido e a Espanha — em que os conflitos entre militantes “lgbtqia+” e mulheres chegaram ao ponto do embate físico — esse debate está muito mais avançado ou, pelo menos, polarizado a ponto de ter se tornado um tema de discussão de nível nacional. Certos absurdos promovidos por transativistas já não são mais possíveis de serem escondidos, tendo se tornado escândalos de grandes proporções — como é o caso da clínica Tavistock do NHS e as inflamadas discussões sobre a chamada “Ley Trans” espanhola. Existe nesses lugares uma consciência um tanto mais desenvolvida de que a ideia de “identidade de gênero”, quando incorporada a leis e regulações, destrói os direitos das mulheres porque eles são fundamentados na diferença sexual.

Keira Bell, a moça que foi o estopim do escândalo da clínica Tavistock.

No Brasil, por outro lado, quem utiliza a expressão “ideologia de gênero” em geral são pessoas de direita, mas nem sempre. Muitas mulheres interessadas na defesa dos direitos de base sexual de sua classe, feministas ou não, e informadas pelas discussões que já ocorrem nesses outros países, às vezes também fazem uso do termo. O problema é que, uma vez que esse termo é colocado em alguma discussão no contexto brasileiro — e aqui essa discussão ainda ocorre pelas beiradas, restritas a grupos fechados e caixas privadas de mensagens —, ele acaba chamando toda a atenção para si mesmo e o debate acaba interditado. Não que exista qualquer boa vontade dos defensores da noção de “identidade de gênero” de realizar um debate justo e baseado na realidade das mulheres, mas aparentemente se referir às políticas promovidas por transativistas e à noção de “identidade de gênero” como “ideologia de gênero” parece ser um pecado mortal e imperdoável, mesmo quando o assunto é a defesa dos direitos humanos das mulheres.

Quando a direita utiliza esse termo, raramente ela está preparada para responder seus críticos e argumentar de acordo. Basta ver os assuntos que essas pessoas costumam elencar em conjunto com o que chamam de “ideologia de gênero”: seu objetivo não é fazer uma defesa dos direitos das mulheres de base sexual, mas uma crítica generalizada e mal ajambrada a um amálgama de coisas, que vão desde instituições que atuam em frentes culturais (como as universidades e a mídia) até os direitos reprodutivos das mulheres e a questão da hormonização de crianças no chamado “processo transexualizador”.

E a esquerda, quando responde a isso, em geral adota duas estratégias. Uma delas é dizer que esta é “uma pauta importada”, fazendo referência justamente aos debates já em estado avançado que ocorrem em outros países, como se mulheres daqui e desses outros países não tivessem interesses comuns. Outra estratégia é afirmar que “‘ideologia de gênero’ não existe”; o que os conservadores chamariam de “ideologia de gênero” seriam os chamados Estudos de Gênero, um campo das Ciências Sociais. O problema é que esses dois movimentos argumentativos da esquerda são na verdade uma forma de fugir da discussão sobre os choques de interesses entre o movimento “lgbtqia+” e os movimentos de mulheres. Além disso, se busca exigir do interlocutor a aceitação incondicional das pautas dos transativistas em um pacote fechado com os direitos das mulheres, sem direito a questionamentos.

Fica claro então que existem duas instâncias nessa discussão que disputam o significado dessa expressão: a esquerda e a direita. Enquanto isso, as mulheres, ainda em processo de estabelecer uma linguagem própria para falar do assunto e por vezes não informadas a respeito de desenvolvimentos de décadas anteriores dessa discussão, não possuem uma língua comum e acabam adotando termos já fortemente carregados de significados, alguns deles inconvenientes à sua própria luta. Um desses termos inconvenientes é justamente o “gênero”, sozinho: se antes, na teoria feminista, esse termo buscava significar a diferença social que prioriza os homens em detrimento das mulheres estabelecida sobre a diferença sexual, hoje ele se refere a performatividades identitárias manifestadas em roupas e trejeitos. Esses termos mais atravancam a discussão do que a esclarecem.

Parte dessa impossibilidade de diálogo diz respeito a como o movimento “lgbtqia+” alcançou notoriedade e relevância, e se perdeu em seus propósitos depois da conquista do casamento civil. Assim que esse movimento conseguiu assegurar para si direitos matrimoniais — depois de ter ignorado completamente discussões anteriores sobre como o casamento em si é uma instituição que serve para manter o poder masculino sobre as mulheres, sem que se deixasse espaço para discutir outros tipos de contrato que não presumem obrigatoriamente o contato genital —, sua agenda já não era mais tão clara. Como em outros momentos de sua história, esse movimento acabou infiltrado (mais uma vez) por pessoas com interesses escusos e até mesmo homofóbicos. Isso se deu (novamente) porque, como na segunda metade dos anos 1970, a crítica feminista da sexualidade perdeu força e foi jogada para debaixo do ônibus sob a pecha do “moralismo”. Eventualmente, os transativistas lograram sucesso e o movimento que antes se colocava em defesa dos direitos civis dos homossexuais passou a priorizar a pauta “trans”, indo totalmente na contramão do que significa a própria noção de homossexualidade. Reconhecendo homens como mulheres iguais a qualquer outra mulher em função de suas autoafirmações — ou talvez como ainda mais mulheres do que as mulheres, como se fosse uma característica mensurável quantitativamente —, os transativistas também se infiltraram nos movimentos e nos grupos de estudos de mulheres. No fim das contas, o debate é sim ideologizado: ele move forças semânticas, sociais e econômicas de modo direto, com objetivos claramente políticos.

O fato de mais mulheres terem chegado na academia não protegeu o seu campo específico de estudos da extinção: todos os programas antigamente conhecidos como “estudos das mulheres” acabaram eventualmente se convertendo em “estudos de gênero”. Uma vez que as mulheres se disponham a estudar sua condição dentro dessa tradição teórica específica, fica difícil teorizar sobre certas coisas relativas ao seu estado de oprimidas e exploradas em função de suas possibilidades reprodutivas sem desmembrar as mulheres de seus corpos, sem uma cisão cartesiana entre corpo e mente. “Gênero”, afinal, foi justamente uma tentativa de desvincular a opressão das mulheres de seus corpos, tentando desculpá-las de uma opressão que não é causada por elas; no entanto, “gênero” também desculpa os culpados, evitando nomeá-los e evitando também apontar as suas ações.

Esse desmembramento não acontece por acaso: desde que se estabeleceu a dominação masculina, algumas mulheres buscam se desvincular de sua condição de mulheres na tentativa de alcançar o status humano. É por isso que os transativistas usam essas estratégias retóricas de validação por partes. Por exemplo, quando eles dizem que “Lino é mulher porque colocou próteses de silicone” ou perguntam aos questionadores se “Fulana deixa de ser mulher quando remove o útero?”, o que eles estão fazendo é um jogo em que não é possível para as mulheres ganhar. Eles desumanizam as mulheres, nos fatiando em partes e impedindo o reconhecimento das nossas partes como constituidoras do nosso todo humano. É de fato uma estratégia de desumanização disfarçada de inclusão: se é impossível definir mulheres sem incluir homens nessa definição, é porque a humanidade reconhecível nas mulheres está de alguma forma subsumida a eles. Como na noção de “honra”, que estabelece a dignidade das mulheres por seus vínculos masculinos, a noção de “identidade de gênero” torna impossível às fêmeas da espécie humana se reconhecerem enquanto humanas de forma independente dos machos.

Qualquer tipo de ideia politicamente carregada que mexa com as crenças e valores mais profundos das pessoas — seus valores morais, mas também o seu senso de justiça e de poder contribuir para alcançá-la — pode ser definida como ideológica. Se isso é uma coisa boa ou ruim, vai depender de como se define o termo “ideologia”; por exemplo, o significado mais brando do termo o define como um conjunto de crenças pelas quais os sujeitos justificam as suas ações e os seus objetivos políticos. No entanto, ideologizadores — ou seja, operadores de linguagem, porque o veículo de qualquer ideologia é necessariamente a linguagem — não têm poder total de dominação e não podem manter seu público rendido o tempo todo, dado que é precisamente no campo do significado que essas disputas acontecem; emissores não têm o monopólio da construção do sentido porque essa construção também é co-autorada pelos receptores. Por isso, as suas estratégias de legitimação são várias mas, principalmente, no caso dos ideologizadores do “gênero”, elas se fazem em duas frentes: pela manutenção da crença da ideia de “identidade de gênero” através da legitimidade conferida pela medicina partindo de pressupostos preconceituosos e anticientíficos, e pela coação das vozes dissidentes através de ameaças e chantagens.

“Gênero”, conforme posto pelos transativistas, é uma crença na existência de essências masculinas ou femininas que regeriam comportamentos típicos independente do sexo, mas ao mesmo tempo atrelados a ele. Trata-se de um paradoxo, que na mente do crente não existe porque, em seu ímpeto de justiça, ele é capaz de aceitar duas crenças conflitantes ao mesmo tempo. É uma crença porque não se trata de uma posição científica: não adianta fazer ciência estatisticamente correta construída sobre pressupostos bambos. O diagnóstico de “incongruência de gênero” é baseado em pressupostos homofóbicos e misóginos altamente questionáveis, os mesmos que serviam para definir a homossexualidade como uma doença até os anos 1990. O seu uso “científico” é ideológico precisamente porque perpetua essas ideias, sem qualquer base na realidade; a própria produção científica não é neutra nem desvinculada do seu contexto social, mas é também enviesada em função das convicções dos seus produtores.

Quando a direita decalca estética nazista a gente logicamente rechaça, mas o que fazer quando a esquerda defende ideias eugenistas?

No discurso político brasileiro, a expressão “ideologia de gênero” já foi abraçada pela direita e virou um shibolete: quem faz uso dessa expressão é necessariamente vinculado à direita se o seu interlocutor for de esquerda. É um termo que, pelo menos no Brasil, já está perdido e sem qualquer chance de salvação a partir do momento em que é agregado a discursos e estéticas que flertam com o nazismo. Mas é importante lembrar que existem muitas formas de dizer as coisas, e é melhor que a gente não adote nenhum desses termos que já foram adotados ou mesmo criados por outros grupos: nem “ideologia de gênero”, nem “gênero” ou mesmo a ideia de “identidade de gênero” precisam ser salvas, ou usadas sem que se esteja empenhada em criticá-las. Esses termos só obscurecem o debate e evitam clareza na conversa. Aceitar esses termos legitima o apagamento das mulheres.

É possível dizer que tanto a esquerda quanto a direita acreditam em “identidade de gênero” e fazem uso dessa ideia de modo ideológico: a esquerda pretende expandir o seu escopo, a direita pretende mantê-lo como está. Poder conversar direito sobre esse assunto faz parte do processo de defascistização pelo qual o Brasil precisa passar, e parte da responsabilidade por isso é da esquerda. Fazer pouco caso das queixas das mulheres sob pretexto de que se tratam de “pautas morais” não contribui nem para os direitos específicos das mulheres, nem para a promoção dos direitos humanos em geral. Isso acontece porque muitas das nossas pautas estão sim vinculadas ao campo da moral: a forma como a esquerda tem tratado os direitos das mulheres — nos definindo enquanto essência e priorizando a exploração sexual de nossa casta sem preocupação real com nossa autonomia —, por outro lado, é que tem sido imoral. Enquanto a direita oferece algum nível de reformismo relativo às suas posições mais tradicionais ou “especializa” as suas fêmeas em determinadas frentes políticas, dando a elas senso de propósito (e, por consequência, as desviando de seus interesses comuns enquanto mulheres), a esquerda tem ameaçado o ganha-pão dos críticos enquanto os rotula de “fascistas”, “preconceituosos” ou ainda “de direita”. Muitas dessas pessoas são simples e trabalhadoras, fazendo nada mais que sua obrigação de atender aos apelos das mulheres que ousam reclamar da invasão de homens em seus espaços separados por sexo.

Perfis geracionais e inclusão

O texto a seguir foi desenvolvido como parte da avaliação da disciplina “Design para Inclusão”, ministrada pela professora Juliana Bueno no PPGDesign da UFPR. Trata-se de um resumo expandido, um exercício e um primeiro momento antes do desenvolvimento de um artigo propriamente dito. Nele, busquei refletir sobre a inclusão dos “idosos do futuro”.


Bastante presentes na cultura pop conectada, os perfis geracionais de que trata este artigo são aqueles traçados a partir de uma comparação de gerações mais novas com aqueles nascidos no pós-guerra, os Baby Boomers. Mesmo sem autoria ou concepção claramente definidos, surgidos de discussões online que por vezes têm como prioridade o humor, esses perfis acabaram sendo adotados por grandes institutos na realização de pesquisas de mercado. É o caso, por exemplo, do Pew Research Center, conhecida instituição americana que investiga opinião pública em uma variedade de temas — religião, imigração, economia, relacionamentos etc — com uso de ciência de dados e análise demográfica, conduzindo levantamentos em várias regiões do mundo (DIMOCK, 2019). Outros institutos, como Gallup e YouGov, e alguns escritórios de demografia e estatística nacionais nos Estados Unidos e na Austrália também se valem dessa nomenclatura.

Fonte: Pew Research Center

Nascidos em meio a uma explosão demográfica que aconteceu a partir do fim dos conflitos da Segunda Guerra Mundial, os chamados Baby Boomers (ou boomers) correspondem a uma geração de nascidos entre a segunda metade dos anos 1940 e a primeira metade dos anos 1960. Por conta de seu contexto histórico, os boomers provavelmente são o único dos perfis geracionais discutidos aqui que possuem um perfil bem delimitado, dado que representam um evento demográfico específico. Nasceram em um contexto de relativa prosperidade econômica, industrialização e urbanização. Foram também responsáveis pela criação de uma cultura jovem que influenciou as gerações subsequentes, como por exemplo as ondas feministas e os movimentos sociais, o rock e os escritores beatnik.

Millennial, por sua vez, é um termo que começou a ser usado para descrever uma sensação ou clima de fim de era, com a aproximação do fim do século 20. Assim, dependendo de como é feita a divisão coorte — e cada instituto ou pesquisador pode fazê-la conforme seus próprios critérios —, esse perfil geracional às vezes é dividido em dois: a geração X, às vezes chamada de “older millennials”, que corresponde aos nascidos a partir da segunda metade dos anos 1960 ao início dos anos 1980, e a geração Y, que hoje são os que recebem a nomenclatura de “millennials” por terem nascido mais ao fim do segundo milênio da era cristã. Foram a última geração a viver em um mundo antes da difusão massiva da internet, e a primeira a ter um padrão de vida pior que a média dos seus pais (IDOETA, 2021).

Ainda que os millennials tenham sido chamados de “nativos digitais” quando eram jovens, hoje são aqueles nascidos entre fins dos anos 1990 e início dos anos 2000 que hoje são mais conhecidos por essa característica. Eles são a chamada geração Z, estão chegando na idade adulta agora. Essa geração vive os efeitos das políticas de austeridade implantadas em décadas anteriores, sendo conhecidos por gastarem mais tempo em dispositivos eletrônicos e menos em leitura atenta.

O uso desses perfis geracionais não se dá, no entanto, sem crítica: em maio de 2021 um grupo de sociólogos e pesquisadores de outras áreas interessados em demografia assinou uma carta aberta ao Pew Research Center pedindo uma reavaliação do uso desses perfis (COHEN, 2021; PINSKER, 2021). Sua crítica aponta que esses grupos de coorte são determinados arbitrariamente por seus anos de nascimento e não por eventos geracionais significativos, não tendo qualquer base científica empírica ou teórica. Eles também apontam que essas gerações são entendidas pelo grande público como categorias e identidades “oficiais”, prejudicando o seu entendimento dessas pesquisas, principalmente quando usadas — e, consequentemente, legitimadas — por esses institutos. A principal crítica do manifesto é de que essas gerações têm mais semelhança com arquétipos estereotípicos do que com uma síntese apropriada de manifestações reais do público.

Ciente desses problemas e limitações apontados (ONION, 2015), esse texto busca usar esses perfis geracionais como pontos de partida para discutir os diferentes perfis de idosos, atuais e que estão por vir, e o projeto de produtos que pense na inclusão desse público. Esses arquétipos ou personas podem nos contar histórias, servindo de atalhos ao passado e nos dando pistas sobre o futuro (DIMOCK, 2019). Eles podem nos ajudar a entender as diferentes experiências formativas e a interação dessas pessoas com o mundo, bem como o seu próprio processo de envelhecimento e suas relações com o entorno, nos ajudando a projetar experiências e produtos para um grupo cada vez mais numeroso, mas historicamente negligenciado. Ainda que esses perfis se tratem de rótulos usados para descrever perfis demográficos geracionais em sociedades ocidentais, eles têm sido usados em pesquisas no mundo todo (OLLIVER, 2021).

É justamente com a geração dos designers boomers, que proporcionou ao mundo observar um crescimento exponencial da população de idosos, que as discussões a respeito de projetos específicos para esse grupo se iniciaram. Pensando em soluções para problemas cotidianos de pessoas idosas, a exposição New Design for Old, idealizada pela filantropa Helen Hamlyn em 1986, buscou levar em conta em seus projetos aspectos que por vezes eram deixados de lado, como a agilidade física reduzida causada pelos problemas de mobilidade e os problemas de visão e audição (COLEMAN, 1993). Na esteira dessa iniciativa, outras exposições também foram realizadas com esse intuito, como o projeto Design Age e a exposição Designing For Our Future Selves, que ao longo dos anos 1980 e 1990 buscaram discutir esses assuntos em profundidade (CLARKSON; COLEMAN, 2013).

Fonte: Design Museum

A exposição New Old do Design Museum, realizada em 2017 (DESIGN MUSEUM, 2017), é uma herdeira direta dessas iniciativas, discutindo temas como demografia, identidade, trabalho, comunidade, casa e mobilidade. Essa exposição apresentou conceitos de produtos e tecnologias assistivas, e também instalações interativas que contavam histórias de vida de alguns idosos. Resenhas sobre essa exposição apontam para uma mudança na nossa forma de pensar sobre os idosos, hoje um grupo mais familiarizado com o uso das telas e das tecnologias interativas para se manter conectados com a família e os amigos (WAINWRIGHT, 2017; PARSONS, 2017; MCLAUGHLIN, 2017). Essa exposição também nos leva a pensar em que ponto da vida começa a velhice em um mundo onde a população idosa nunca foi tão numerosa e, ao mesmo tempo, isolada.

O Brasil, por sua vez, antes conhecido como uma nação jovem, vive o desafio do envelhecimento progressivo de sua população. Experimentando uma mudança na pirâmide demográfica, que vê reduzido o grupo dos jovens economicamente ativos, o país começa a experimentar mudanças sociais que já afetam outros países há mais tempo. Esse desafio nos leva a pensar, entre outros assuntos, nas políticas públicas de trabalho, nas questões envolvendo aposentadoria e a promoção de educação continuada depois dos 60 anos de idade, e nas possibilidades de que esse discurso de habilitação dos idosos sirva como forma de precarizar as condições de trabalho para essa população ao invés de promover a real inclusão dessas pessoas. Além disso, o desenvolvimento de tecnologias assistivas não pode servir como pretexto para a criação de soluções tecnocratas que enxergam a tecnologia como redentora, desembocando em determinismo tecnológico. Pensar nesses perfis geracionais e nos próximos idosos para quem vamos projetar também nos provoca a refletir sobre a necessidade de habilitar pessoas de todas as idades em literacia digital, para que possam lidar corretamente com as interfaces e a desinformação que circula nelas.


Referências

CLARKSON, P. John; COLEMAN, Roger. “History of Inclusive Design in the UK”. Applied Ergonomics. 2013.

COHEN, Phil. “Open letter to the Pew Research Center on generation labels”. Family Inequality, 26 de maio de 2021.

COLEMAN, Roger. “Design Research for Our Future Selves”. Royal College of Arts: Research Papers. V. 1. N. 2. 1993/4.

DESIGN MUSEUM. “New Old”. Design Museum: What’s on.

DIMOCK, Michael. “Defining generations: Where Millennials end and Generation Z begins”. Pew Research Center, 17 de janeiro de 2019.

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A construção da verdade em vídeo

O texto abaixo foi escrito como parte da avaliação da disciplina “Design e Epistemologia”, dada em conjunto pelos programas de Pós-Graduação em Design da ESDI/UERJ e UFPR. Na revisão por pares, um dos professores elogiou e recomendou publicação; o outro, achou “superficial a ponto de ser irritante”. Tendendo a concordar com o professor mais rigoroso, portanto, só me resta publicá-lo no veículo mais apropriado — minha própria plataforma.

introdução

O cinema em particular e o audiovisual em geral são — como algumas outras áreas do fazer profissional, como o design, a publicidade, o jornalismo… — frutos do que se convencionou chamar Modernidade, ao mesmo tempo em que produzem leituras sobre ela [1]. Através da sua linguagem, construída sobre limitações e possibilidades científicas da técnica que a produz, o vídeo possibilitou a criação de modos de ver próprios desse modelo de sociedade. Esse artigo busca refletir e discutir formas de construção da realidade e da verdade através da linguagem do vídeo, considerando as presentes possibilidades dessa linguagem trazidas pelas suas formas de captação, pela alta resolução das imagens e pela inteligência artificial.

No que diz respeito à produção artística e de entretenimento, as possibilidades construtivas dessa linguagem audiovisual, já consolidada em seus anos de história, são usadas de maneira deliberada de modo a construir determinadas narrativas e possibilidades de leituras dessas obras. Mas uma das ideias que emergem da possibilidade de se reproduzir tecnicamente imagens da realidade é a de que o vídeo proporciona um meio fidedigno de representar essa realidade. Essa não é necessariamente uma ideia adotada de forma geral dentro da variada comunidade dedicada a esse tipo de produção, mas é especialmente comum no que diz respeito ao jornalismo e ao vídeo documental.

Como toda linguagem, a linguagem audiovisual é ela também uma espécie de caixa de ferramentas para determinado tipo de construção artificiosa, seja essa construção uma tentativa de retrato da realidade ou uma criação artística. A produção de ficções ou de reportagens [2] com o vídeo se utiliza essencialmente das mesmas ferramentas e são constituídas de blocos construtivos de mesma natureza.

isenção, ilusão & ficção

A partir da breve discussão anterior, é possível entender que mesmo a produção audiovisual mais pretensamente desinteressada ou neutra/isenta — como se posicionam alguns dos “produtores de realidade” do jornalismo — não escapa de ser construída com as mesmas ferramentas e possibilidades usadas na ficção. Sendo assim, construídas da mesma substância, a verdade e a ficção podem, pelas suas próprias possibilidades técnicas e narrativas, se entrelaçarem ou, até mesmo, sequer se distinguirem. A verdade no vídeo surge desse seu lugar na vida social (FOUCAULT, 2002) — como meio informativo e, ao mesmo tempo, lúdico.

Existe uma anedota a respeito de uma das primeiras projeções cinematográficas da história, realizada pelos irmãos Lumiére em Paris em 1896 (GRUNDHAUSER, 2016). Conta-se que, ao enxergar diante de si um trem a vapor se aproximando em alta velocidade, o público do cinema assustou-se, e algumas pessoas fugiram desesperadas com medo do iminente atropelamento. A colisão impossível certamente não aconteceu, mas a sua possibilidade só pôde existir para aquela audiência — ou para os ouvintes da anedota — pelas ilusões que essas projeções imagéticas causam. Desde os inícios do vídeo, portanto, a discussão a respeito do ilusionismo possível através das suas imagens existe.

Figura 1: “The Arrival of a Train” (1897).

Como discurso, o vídeo produz também efeitos no mundo, dado que é ele mesmo um modo de olhar, um modo literal de se elaborar visões de mundo — Flusser fala em “biombos” (1985. P. 7). É antiga já a discussão do vídeo como meio de agitação e propaganda, como forma de estabelecer certos tipos de representações e leituras sobre certos tipos de personagens, lugares, indivíduos e coletivos de pessoas pela organização dos modos de falar (EISENSTEIN, 1990). Porém, as possibilidades técnicas e científicas que se colocam atualmente e se somam ao seu conjunto de ferramentas exigem a continuidade dessas discussões, pertinente precisamente pelas possibilidades de reprodução ilusória da realidade que o vídeo possui.

Essas possibilidades não capacitam a técnica a fazer uma cópia exata da realidade — a coincidência do mapa com a realidade que busca representar é tida como a perfeição cartográfica em um pequeno conto de Jorge Luis Borges [3] —, mas cria uma aproximação com ela que é real o suficiente. Essa possibilidade é circunscrita por recortes, edições e enquadramentos, criando ficções mesmo quando a intenção dos emissores é em direção a uma tentativa de re-produção da realidade.

as possibilidades de verdade do vídeo

Sendo de natureza fictícia, as verdades produzidas pelo vídeo, como modos de falar, permitem uma inteligibilidade comum e atuam na construção identitária não só daqueles que constituem a sua audiência, mas também daqueles que o produzem, que o circulam, ou até mesmo que se mantém alheios, sendo indiretamente afetados por eles. Ainda que as suas tentativas documentais sejam também fictícias, fabricadas, entre as possibilidades do vídeo está o contato para além das fronteiras de tempo e espaço — aprofundadas ainda mais pela disseminação do acesso à internet. É, portanto, falsa a oposição entre uma verdade que é construída pela linguagem e uma verdade independente da linguagem, que emerge da natureza e não é influenciada pelas ações humanas (FOUCAULT, 2007); toda verdade necessita da linguagem para ser articulada, para se fazer construir e se fazer entender.

Uma das formas de produção da realidade muito difundidas atualmente é o uso massivo de câmeras de segurança, principalmente nos ambientes urbanos públicos. Deslocadas de sua utilização comum no cinema e na TV, as câmeras de segurança têm como objetivo o monitoramento da realidade que se observa através de suas lentes. Sua forma de captação, que resulta em uma sequência linear direta de imagens, sugere que não existe ali uma construção narrativa intencional, apenas o monitoramento das atividades em um dado local de forma impessoal e isenta. É essa percepção de retrato da realidade das imagens por elas captadas que as legitima como provas documentais em processos criminais e as estabelece como ferramentas discursivas de poder.

Figura 2: Frame de “Security Cameras”, comercial da Coca-Cola que faz uso de imagens reais e reconstruídas de câmeras de segurança, com intenções dramáticas.

A câmera de segurança produz imagens com qualidade relativamente inferior à de outros equipamentos de mesma função. Ela funciona como uma tentativa de ampliar o alcance da vigilância realizada por olhos humanos, sem no entanto permitir ao observado identificar seu observador. Como o panóptico prisional idealizado por Bentham e comentado por Foucault (1987), as câmeras de segurança criam não só a armadilha da visibilidade, mas também modos de compreender e experienciar a realidade por aqueles que se valem de suas imagens: ao mesmo tempo em que elas auxiliam na construção de uma “sensação de segurança” através da tentativa de inibição da atividade criminosa (CARDOSO, 2013), elas também permitem a domesticação dos espaços público e privado e de seus ocupantes.

As características imagéticas próprias das produções realizadas através de câmeras de segurança — com suas resoluções mais modestas, cheias de ruídos e, muitas vezes, sem a informação de cor — possibilitam que se aflore a partir delas uma linguagem reconhecível, reprodutível e ressignificável. O emprego de imagens similares às produzidas pelas câmeras de segurança no campo da ficção — simulando as suas deficiências técnicas e as suas características estéticas mais evidentes [4] — estabelecem, por exemplo, um modo de narrar que se apropria dessas características e busca, também no espaço da criação artística, efeitos de significação similares ao que as imagens “autênticas” produzidas por estes aparatos transmitem. O reconhecimento dessas imagens enquanto linguagem depende, portanto, dos seus modos de representação.

O vídeo documental, por sua vez, é um gênero do audiovisual que se coloca como crônica não-ficcional. Ainda que alguns autores o identifiquem como um tipo de interpretação subjetiva da realidade, por vezes se afirma em seguida que esse gênero “tem por característica sustentar-se em acontecimentos reais”, tratando “efetivamente daquilo que ocorreu”, “e não daquilo que poderia ter acontecido” (PUCCINI, 2009. P. 24). É na possibilidade reprodutiva imagética propiciada pela técnica que a “realidade” — ou seja, a “verdade” — do documentário é construída: a noção do documentário como um recorte ou enquadramento próprio do diretor é às vezes bastante explícita na literatura da área do Cinema e da Comunicação (NICHOLS, 2012), mas não resolve o paradoxo das afirmações de credibilidade daqueles que capturam imagens com esse propósito.

Pode-se pensar que documentários naturalistas, por exemplo, se aproximem de um discurso científico: eles advogam um determinado acesso privilegiado a natureza — inacessível às pessoas comuns — quando buscam, através do uso de altas resoluções, captar a realidade de forma fidedigna em suas cores, sons, contextos, texturas, lugares e composições. Muitas dessas expedições para captar imagens na “natureza selvagem” se valem da consultoria ou da parceria com cientistas. É o caso de alguns dos documentários produzidos pela Natural History Unit, divisão do canal de televisão britânico BBC.

Figura 3: Equipe da Natural History Unit da BBC nos anos 1950.

Criada em 1957, a NHU alega “revelar a audiências ao redor do mundo as maravilhas extraordinárias da natureza por meio de narrativas excepcionais, imagens de cair o queixo e ciência de ponta” (BBC STUDIOS, s.d.) [5]. A BBC é uma rede de broadcasting estatal que enuncia certo discurso a respeito da cultura britânica dentro do seu próprio território e também no exterior. Esses enunciados têm muito a ver com a validação de um projeto moderno que em certa medida foi capitaneado pela Grã-Bretanha e a Revolução Industrial: de que as sociedades ocidentais seriam um tipo especial de civilização, que rompeu com o passado através da promoção de valores universais e pela aplicação do método científico (LATOUR, 1994).

Algumas formas de captar essas imagens dos documentários produzidos pela NHU usam truques que brincam com a percepção e a cognição animal, no intuito de manter cinegrafistas e cientistas afastados dos assuntos retratados e não inibir a aproximação dos animais. Por vezes, ao mesmo tempo em que se usam as técnicas clássicas da fotografia — como teleobjetivas, câmera lenta e lentes especiais —, câmeras escondidas são inseridas em bonecos mecatrônicos animados e controlados a distância (BBC, 2017) [6]. Esses aparatos são modos de organizar a realidade de que se valem esses documentaristas, são truques usados para tentar uma aproximação da realidade da natureza ao mesmo tempo em que se mantém o distanciamento necessário para não se perturbar a natureza observada.

Esse é mais um exemplo que demonstra que não existe, na prática, uma oposição real entre verdade e ficção. É interessante, portanto, compará-lo com o anterior, das câmeras de segurança: tratam-se de dois modos diferentes de se construir a realidade através do vídeo. Discursivamente, a câmera de segurança constrói sua versão de verdade a partir dos efeitos visuais e dos defeitos inerentes à seu modo de produção, imbricados nas imagens produzidas. Já os documentários da BBC se valem justamente do oposto: a História Natural retratada pelo canal se faz a partir de imagens de altíssima resolução e capturadas por lentes poderosas, produzidas com o melhor que a tecnologia fotográfica possui no presente. Mesmo que câmeras de segurança e documentários naturalistas construam visões da realidade através de técnicas de mesma natureza, tratam-se de duas formas diferentes de se construir fidedignidade.

A rede necessária a se mobilizar e efetivamente produzir um documentário como esses da divisão de História Natural da BBC exige articular cientistas, fotógrafos, cinegrafistas, editores, comunidades, instituições, infraestruturas (logística, comunicação etc), e uma série de pessoas e seres não humanos (naturais e fabricados). Todos esses atores estão, conscientes ou não de seus papéis, empenhados em uma atividade que se constitui basicamente em tradução (LATOUR, 2005): eles traduzem a audiências do mundo todo — ou, pelo menos, do mundo alcançável pela influência do canal britânico — visões da natureza sob um dado ponto de vista. Essas visões nem sempre são povoadas por seres humanos, em geral posicionados atrás das câmeras manipulando equipamentos, e distanciados da natureza que retratam.

Como as câmeras de segurança e as imagens documentais em alta resolução, o deepfake pode também ser entendido como uma forma de criar imagens que podem ser tomadas por realidade. Mas as imagens produzidas através dessa técnica de síntese computacional são, por princípio, ilusórias; só é possível tomar as imagens de deepfake por realidade ao ser deliberadamente enganado por elas. Bastante difundida na criação de filtros para vídeos e fotos em redes sociais que alteram as características do rosto dos seus usuários, essa técnica usa aprendizagem de máquina para mapear um rosto e reproduzi-lo sobre outro, gerando resultados em vídeo. Algumas das primeiras e mais populares aplicações dessa técnica têm sido a criação de vídeos de caráter pornográfico, como aconteceu com a atriz norte-americana Kristen Bell; os vídeos falsos com seu rosto estão ainda hoje em circulação em sites pornográficos (REDAÇÃO, 2020).

Figura 4: Frames de um vídeo de sátira produzido por Bruno Sartori com deepfake, usando imagens de Bolsonaro e Lula sobre imagens da novela mexicana A Usurpadora.

A diferença do deepfake para outras técnicas de manipulação digital de vídeo é que ele permite simular expressões faciais de forma muito realista. Usando técnicas de deepfake e atores que interpretem razoavelmente bem os gestuais de uma pessoa, é possível criar imagens falsas, mas coerentes e convincentes de alguém. Mesmo que essa mentira possa ser desmentida mais tarde, a verdade por trás dela pode não ser suficiente para convencer aqueles por ela enganados — vide a contínua propagação de fake news já desmentidas (ESTADÃO VERIFICA, 2018).

Como as primeiras e mais comuns aplicações da técnica atestam, o deepfake tem sido extensivamente usado para a criação de pornografia, a ponto de fóruns de programadores precisarem se posicionar nominalmente como estudantes da técnica que não intentam produzir esse tipo de imagem, como atesta a página “Deepfakes that are Safe for Work” no Reddit (2021). Esse uso levanta questões de consenso, de ética, de arruinamento de reputações, mas também aquelas relativas à exploração sexual das mulheres e da construção contínua da imagem delas enquanto objetos sexuais. Ele também reitera um certo discurso sobre o sexo que é estruturado e propagandeado pela pornografia, atuando na própria construção do que é o sexo propriamente dito.

Entre essas imagens fictícias do sexo geradas por manipulação digital está um caso recente, que vitimou o então candidato ao governo do estado de São Paulo, João Dória. Em 2018, às vésperas da eleição, um suposto vídeo íntimo do candidato circulou pela internet e foi por ele imediatamente desmentido. O laudo da análise independente encomendada pela revista Veja não cita deepfake (QUINTELLA, 2018), mas esse caso provocou discussões na época sobre o potencial de destruição que essas novas possibilidades de manipulações em vídeo permitem.

Por outro lado, alguns estudantes da técnica passaram a utilizá-la no desenvolvimento de memes com crítica política: é o caso do jornalista Bruno Sartori, que disse em entrevista que seu trabalho humorístico pode ajudar a desmistificar a tecnologia e identificar seus usos (GLOBOPLAY, 2019). Geralmente o que leva alguém a perceber que um vídeo pode ter sido gerado com deepfake são os glitches e os “erros de percurso” da técnica (LATOUR, 2016) — como quando ela não compõe direito os rostos e a imagem se desloca um pouco, ou quando as expressões faciais acabam gerando imagens que são conflitantes para a nossa interpretação cognitiva e acabam caindo no chamado Vale da Estranheza (CABALLAR, 2021). É, então, nesses desvios que a realidade da mediação do deepfake aparece e se evidencia.

As técnicas de rede generativa e inteligência artificial que compõem a caixa de ferramentas do deepfake não são usadas só por curiosos para fazer vídeos bizarros e arruinar reputações, no entanto. Elas também são empregadas em filtros de redes sociais e engines de reconhecimento facial, a princípio para aplicações lúdicas e meramente de entretenimento. No entanto, as discussões éticas que esse uso suscita não são menos complexas do que no que diz respeito à produção de pornografia falsa: pode-se discutir aqui os possíveis danos à saúde mental dos usuários desses filtros — como os distúrbios de imagem corporal provocados pelo uso excessivo de redes sociais — e o uso dessas imagens por governos e sistemas de vigilância, fazendo uma ponte com o primeiro tema tratado neste subitem.

considerações finais

Existem inúmeras formas de se construir verdades e mentiras através do audiovisual. Se antes os limites técnicos impediam um realismo representacional nas narrativas de fantasia e forçava algumas delas aos domínios da animação em duas dimensões [7], hoje eles não são um entrave tão grande da criatividade no que diz respeito a obras de ficção. Quanto às possibilidades de captura do real, aparentemente se trata apenas de uma questão de quantidade de pixels: a mais alta resolução de imagem atingida até o momento foi em uma imagem produzida pela empresa chinesa Jingkun Technology, que possui 195 bilhões de pixels [8].

São infinitas as possibilidades de falar de verdade e mentira, de mentir com imagens legítimas, de montar a verdade com imagens em movimento. Com a profusão do vídeo na vida comum trazida pela internet, essa linguagem só se expande. Esse artigo tentou articular modestamente três dessas possibilidades, de modo a encontrar entre elas formas de discutir os temas na disciplina de Design e Epistemologia, seus pontos de contato e suas especificidades. A principal conclusão referente a esses estudos e leituras é a de que usar a linguagem é mentir (ou criar) usando uma convenção compartilhada (NIETZSCHE, 2009).

Os pensadores da área do audiovisual em geral parecem estar conscientes do caráter artificioso das técnicas do vídeo. Desde os seus princípios históricos em shows de ilusionismo, antes mesmo do estabelecimento de uma linguagem reconhecível, o cinema e o vídeo fazem parte desse universo das ilusões imagéticas: sua linguagem é toda no sentido de uma construção compositiva com imagens, seja essa uma construção interpretativa e subjetiva da verdade ou uma narrativa com tendência representativa realista da ficção.

A linguagem audiovisual, como toda linguagem que permite a construção de discursos e enunciados em invólucros coerentes, é flexível, adaptável e também generativa. A verdade e a mentira são construídas de forma semelhante pelos instrumentos compositivos do vídeo pela simples impossibilidade de se estabelecer uma linguagem própria da verdade em vídeo: a linguagem da verdade e da isenção pode sempre ser apropriada como recurso narrativo.

O que condiciona certas leituras enviesadas da realidade em vídeo é justamente os modos de representação empregados na sua produção, a linguagem propriamente dita que realiza essa mediação; mas sem linguagem, a mediação e o entendimento simplesmente não acontecem. O fato de os próprios pensadores do vídeo não conseguirem às vezes se desfazer desse paradoxo entre subjetividade e realidade demonstra que o cerne do problema não é a falta de acesso direto à realidade e à “coisa em si”, dado que esse acesso é sempre intermediado pelo castelo de cartas da linguagem. O filtro da verdade é a mente humana, e esse filtro não tem como ser driblado.


notas

[1] Walter Benjamin discute isso a partir do ponto de vista da escola de pensamento em que se inseria, a Teoria Crítica, comentando a possibilidade de reprodução técnica como um desenvolvimento moderno em seu ensaio mais famoso (BENJAMIN, 1987), publicado originalmente em 1936.

[2] “Reportagem” descreve um gênero jornalístico de caráter informativo, mas a palavra foi escolhida propositalmente aqui por sua ambiguidade e pela possibilidade de significar uma tentativa de estabelecer uma relação com a realidade.

[3] Originalmente publicado em uma revista argentina em 1946, “Del Rigor de La Ciencia” pode ser lido em quatro idiomas neste link.

[4]  Além da propaganda da Coca-Cola, um outro exemplo é o programa de TV americano de 2010 chamado Look: The Series, que simula em suas imagens os defeitos e efeitos da transcodificação de vídeo com objetivo de criar um efeito dramático narrativo (LOOK, 2010). Uma discussão sobre câmeras de segurança, bem como a sua articulação com o texto Vigiar e Punir (op. cit.) de Foucault a partir de exemplos como esses, foi desenvolvida em maior extensão e profundidade em um artigo ainda não publicado, escrito por mim e outros dois colegas da PUCPR.

[5]  Tradução livre do original: “reveal to audiences around the world the extraordinary wonders of nature through exceptional storytelling, jaw dropping imagery and cutting-edge science.”

[6]  Alguns desses robôs espiões têm como propósito atrair animais em períodos de acasalamento para registrar seus processos e ritos de reprodução — o que lembra um pouco o mito de Pasífae e o touro de Creta…

[7]  Diz-se ser o caso de The Lord of The Rings, a animação (1978).

[8] A imagem produzida retrata uma vista panorâmica interativa da cidade de Xangai.


referências

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GRUNDHAUSER, Eric. “Did a Silent Film About a Train Really Cause Audiences to Stampede?Atlas Obscura, 3 de novembro de 2016. Acesso em 30 de junho de 2021.

LOOK, The Series. Direção de Adam Rifkin. EUA: CapturedTV, 2010. Série de TV, 1 temporada.

THE LORD of The Rings. Direção de Ralph Bakshi. EUA: Fantasy Films, 1978. 2h12m.

LATOUR, Bruno. Jamais Fomos Modernos: ensaio de antropologia simétrica. Tradução de Carlos Irineu da Costa. São Paulo: Editora 34, 1994.

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NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. São Paulo: Papirus, 2012.

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QUINTELLA, Sérgio. “Perícia revela laudo sobre vídeo íntimo atribuído a João Doria”. Veja São Paulo: Poder SP. Acesso em 2 de julho de 2021.

E a série da Butler, hein?

Pois é, tirei do ar. Eram minhas notas pessoais, muito marcadas pelo meu próprio desconhecimento, de uma leitura que não consegui continuar — e a culpa disso não foi apenas o estilo pouco apreciado da escritora —, na qual não tive paciência de me aprofundar e que ficava por aqui ocupando espaço sob o rótulo de uma promessa. Esse ano de merda está chegando ao fim e tá na hora de resolver os assuntos inacabados.

Um número significativo de mulheres já me contatou para agradecer e dizer que meus textos serviram para que elas pudessem compreender melhor do que se trata o livro. Algumas chegaram na graduação ou na pós e se depararam com aquele texto hermético e ficaram injustamente se sentindo burras por não compreendê-lo; outras, atormentadas pelas questões recentes e prementes dos movimentos de mulheres, queriam compreender melhor porque havia tanto auê no entorno dessa escritora específica; outras, compreendendo a situação crítica na qual se encontra a noção das mulheres enquanto sujeitos de seu próprio movimento, buscavam se armar de argumentos para quando enfrentassem as infindáveis e desonestas discussões sobre “gênero”. Muita gente que, como eu, não têm origens tão nobres nem pais com formação superior e chega meio analfabeto de capital cultural na cidade grande quando vai pra universidade, acaba patinando muito na linguagem e nos jargões dos cursos superiores. É quase como adentrar uma sociedade secreta/discreta onde você precisa reproduzir e repetir os ensinamentos e rituais que são passados, às vezes sem muita reflexão crítica — que é justamente o oposto do objetivo de uma universidade! Minha realidade e experiência vivida não me permitiram ler Butler e tomar aquilo como uma teoria que reflete experiências de mulheres e contribui na sua emancipação, seja na minha primeira tentativa imatura de ler o livro, seja na leitura que gerou essa série e que já era mais informada.

Algo que passou a me incomodar a respeito da série ao longo dos anos (o primeiro post é de 2015) foi a forma como minha escrita dessa época envelheceu mal. Eu não tinha nem mesmo a disciplina que tenho hoje para escrever, e estava ainda seriamente prejudicada pelo péssimo hábito do Twitter. Além disso, tem a retórica tosca e a falta de embasamento em algumas afirmações que fiz que, ainda que eu tenha deixado claro o tamanho de minha ignorância, hoje são dúvidas sanadas ou ao menos assuntos melhor compreendidos. Para ficar satisfeita com esses textos, teria de reescrevê-los todos inteiramente, coletar mais referências e cruzar mais leituras, e acho que tem livros melhores para ler nesse mundo disputando minha atenção de peixinho dourado — alguns, inclusive, cujas séries estão paradas aqui também e são material de muito melhor qualidade que minhas interpretações do que Butler escreveu, ou mesmo muito melhores que o próprio Problemas de Gênero.

Não pretendo mais terminar o fichamento desse livro porque já queimei neurônios o suficiente com ele para precisar dar-lhe ainda mais atenção. Tem mulheres maravilhosas e muito mais instruídas que eu por aí falando dessa viragem queer no feminismo com referências muito melhores — aqui um exemplo, aqui outro, aqui outro, e aqui outro. Isso não significa que esses textos não vão mais estar disponíveis. Em algum dia que ainda não se sabe perdido no futuro, pretendo talvez quem sabe publicar essas minhas notas como e-book com alguma revisão. Isso vai depender da demanda, claro: me avise aí se você acha interessante que algo assim realmente veja a luz do dia, ou se não é melhor mesmo eu ir caçar outra coisa para fazer com meu tempo além de construir má fama perante meus pares nessa grande loja maçônica que é a academia.

Tecnologia e ideologia

O texto abaixo foi escrito originalmente como parte de um projeto de pesquisa para a seleção do doutorado em Ciência Política da UFPR em 2018. Bati na trave no processo seletivo, mais ainda gosto muito do que produzi e deixo aqui para apreciação de quem, como eu, se interessa por esses temas. Outro pedaço dele pode ser acessado aqui.


A tecnologia, como processo e produto das interações sociais em um dado tempo e lugar, manifesta-se material e imaterialmente através de seus processos, artefatos e redes de interações entre indivíduos e aparatos. Refletindo os valores de seus produtores e meios, ela pode ser compreendida de forma acrítica — como mero modo de produção de objetos, como suas manifestações materiais propriamente ditas, e como um conjunto de técnicas de que dispõe um povo em um dado contexto.

Entretanto, é preciso também compreendê-la de forma crítica, para além de suas ocorrências óbvias. Assim, a tecnologia também pode ser entendida como um constructo social complexo, que constitui e é constituída pela sociedade. Desse modo, é possível compreender a tecnologia como uma rede que envolve sistemas, artefatos e pessoas, e que tem imbricada em si mesma não apenas as ideologias de seus produtores e interatores, mas sendo ela própria uma ferramenta de construção ideológica (VIEIRA PINTO, 2005. p. 219-225).

Para compreender a tecnologia como ferramenta ideológica, é preciso compreender o significado desse adjetivo. Pode-se entender “ideologia” como um processo material geral de produção de ideias direcionadas à ação que refletem, promovem e legitimam certas “visões de mundo” relativas a conflitos de poder social. Esse processo envolve a promoção de crenças e ideias ilusórias que, ainda que não necessariamente sejam falsas, podem se valer de dissimulação e distorção de fatos reais para se mostrarem plausíveis (EAGLETON, 1999).

A ideologia, por si só, não serve tanto como mecanismo de controle social, mas como consolidadora de poderes através das disputas no campo do significado. O consentimento dos dominados se dá mais pelas suas condições materiais de existência do que por um convencimento genuíno deles de que as ideias a eles expostas são legítimas. Mas é através da disputa ideológica pelos significados que se encobrem os sistemas materiais de opressão: “Dominação deve incluir o controle sobre o significado se as relações de governo forem disseminadas enquanto interesses de todos. É o significado que pode estar comprometido com a dominação, não a verdade” (THOMPSON, 2001. p. 31. Tradução livre).

Os processos ideológicos de legitimação de poder envolvem também o descolamento das ideias e valores propagados por eles de seus contextos históricos, levando à naturalização dessas ideias e à identificação dos dominados com o poder dos dominantes, e convertendo, assim, o controverso em óbvio:

O estudo da ideologia é, entre outras coisas, um exame das formas pelas quais as pessoas podem chegar a investir em sua própria infelicidade. A condição de ser oprimido tem algumas pequenas compensações, e é por isso que às vezes estamos dispostos a tolerá-la. O opressor mais eficiente é aquele que persuade seus subalternos a amar, desejar e identificar-se com seu poder; e qualquer prática de emancipação política envolve portanto a mais difícil de todas as formas de liberação, libertar-nos de nós mesmos. (EAGLETON, 1999. p. 13)

Enquanto batalhas travadas no campo do significado, as disputas ideológicas operam diretamente na vida cotidiana, através de experiências e em cenários familiares ao público ao qual esses enunciados se destinam. Essas estratégias têm como intenção o direcionamento da ação coletiva e da opinião pública e, como finalidade, o estabelecimento da hegemonia em um dado contexto social. Observar essas disputas deve, portanto, partir de um ponto de reconhecimento da existência desses conflitos, o que implica que essa observância não se dá de forma neutra. Para uma análise desse tipo, portanto, é necessário estipular parâmetros relativos à forma como esses discursos são codificados e entender as formas, linguagens, e filtros pelos quais a informação passa, do processo de sua configuração até que seja decodificada dentro dos limites das definições dominantes na tentativa de cumprir os propósitos de seus enunciadores.

A questão da “estrutura dos discursos em dominância” é um ponto crucial. As diferentes áreas da vida social parecem ser dispostas dentro de domínios discursivos hierarquicamente organizados através de sentidos dominantes ou preferenciais. Acontecimentos novos, polêmicos ou problemáticos que rompem nossas expectativas ou vão contra os “construtos do senso comum”, o conhecimento “dado como certo” das estruturas sociais, devem ser atribuídos ou alocados aos seus respectivos domínios discursivos, antes que “façam sentido”. A maneira mais comum de “mapeá-los” é atribuir o novo a algum domínio dos “mapas existentes da realidade social problemática”. Dizemos dominante e não “determinado”, porque é sempre possível ordenar, classificar, atribuir e decodificar um acontecimento dentro de mais de um “mapeamento” (HALL, 2003. p. 374).

Ainda que a forma distribuída e descentralizada de criação e difusão de conteúdo própria da internet tenha colaborado para a criação de uma “mística” em que suas redes pudessem servir como uma possibilidade de emancipação social e política, tornando ultrapassadas algumas das análises a respeito da cultura e das mídias de massa, essa previsão não se concluiu. Ao contrário: as grandes plataformas de usuários, quando não disputam a hegemonia dos mass media em moldes semelhantes, têm sido usadas por eles como mais um canal de atuação.

Ainda que a difusão da infraestrutura de internet tenha permitido aos usuários da rede a criação de suas próprias plataformas, manter um sistema desses no ar exige um investimento mínimo e algum conhecimento técnico, o que acaba encorajando o uso das plataformas privadas. Assim, as mecânicas de criação de consenso, propagação ideológica e hegemonia, conforme descritas e teorizadas por estudiosos desses temas, ainda se mostram ferramentas de análise úteis no sentido de identificar a ação desses discursos.

Um conceito útil para esse tipo de análise é o de indústria cultural, cunhado por Adorno e Horkheimer (1985). Entendido como a expansão do capitalismo sobre a cultura, o conceito ressalta o papel das grandes corporações na industrialização de vários — senão todos — aspectos da vida cotidiana. Uma vez que transforma toda a dimensão da atividade humana, da arte até as relações, em produtos a serviço do sistema de produção que busca preservar e do qual depende para continuar existindo, a indústria cultural teria, portanto, um caráter mistificador da realidade e objetificador das relações humanas [1]. A legitimação dessa mercantilização da vida se dá por propagação ideológica através dos próprios produtos que tal indústria visa circular, implicando não somente na perda da “aura” de autenticidade dos produtos culturais (BENJAMIN, 2018), mas também comprometendo a própria autonomia das pessoas coisificadas nesses processos.

Em “Manufacturing Consent”, Herman e Chomsky (2008) apresentam um modelo de propagação ideológica pelas mídias de massa e imprensa. Os autores destacam que, em ambientes políticos onde não existe censura formal dos meios de comunicação, a atuação dessa propaganda é ainda mais velada e sutil que em contextos onde há clausura. Segundo o modelo, a aquiescência da população aos interesses de grupos dominantes e em choque direto com os seus próprios se dá pela manipulação da informação circulante a partir da passagem desta por cinco grandes filtros. O primeiro deles tem relação com o fenômeno da “industrialização da imprensa”, que aconteceu a partir do século XIX, ganhou força com a televisão e atingiu ponto crítico com o advento da internet e das companhias de TV a cabo no século XX. A manutenção de uma estrutura de mídia que atinja grandes audiências depende de grandes investimentos, o que acaba por comprometer a independência e a isenção dos veículos de mídia. O segundo filtro, diretamente relacionado com o primeiro, trata da necessidade de financiamento da mídia através da venda de tempo e espaço para anunciantes publicitários, que buscam grandes audiências com poder de compra e custeiam conteúdos conforme a possibilidade de retorno financeiro. O terceiro e quarto filtros dizem respeito às disputas pela narrativa das informações circulantes propriamente ditas, seja pela criação de fontes “oficiais” que “facilitam” o trabalho dos profissionais de mídia no momento da cobertura dos fatos (terceiro filtro), seja pela coação e punição desses profissionais e veículos por seus patrocinadores e opositores caso as histórias publicadas por eles porventura fujam da narrativa preferencial (quarto filtro). O quinto filtro caracteriza a demarcação de um “inimigo comum”, através do ocultamento de informações, demonização de discursos de oposição e criação de “espantalhos”.

O modelo proposto por Herman e Chomsky é interessante por levar em conta muitos dos fatores-chave necessários para entender os mecanismos sócio-políticos em que operam as ideologias e pode contribuir bastante para uma discussão que abarque o cenário em rede, mas é incompleto dada sua especificidade. Assim, essa compreensão teórica pode ser complementada com outras visões. Raymond Williams (1979), baseando-se no conceito de hegemonia de Antonio Gramsci, assinala três processos diferentes e complementares no campo das disputas ideológicas: a ideologia dominante, a ideologia residual e a ideologia emergente. O primeiro corresponde aos sistemas de crenças vigentes, responsáveis pela manutenção da ordem social tal como ela se encontra e é o tipo mais difícil de ser desafiado, dada sua pregnância na vida social. As ideologias residuais correspondem a crenças e práticas derivadas de estágios sociais anteriores, que fizeram parte de ideologias anteriormente dominantes e têm sua sobrevivência manifestada principalmente nas mitologias e tradições que ainda governam o presente. Já as ideologias emergentes dizem respeito aos valores e práticas que disputam a hegemonia com as ideologias dominantes na intenção de reorganizar a ordem social.

Baseando-se em algumas dessas teorias e autores, Nescolarde-Selva et al (2017) propõem um modelo matemático que sistematiza essas relações a partir de uma compreensão relacional dos componentes que constituem uma ideologia e suas variáveis, e concebe essas relações enquanto um sistema impuro [2]. Seu modelo toma como princípios constituintes de uma ideologia o seu sistema de valores e crenças, o comportamento e a linguagem usadas pelos seus partidários, as suas perspectivas e recomendações de conduta e o aparato organizacional de ativismo que uma ideologia faz uso para atingir seus objetivos. Considera, também, como variáveis ideológicas os graus em que as crenças substanciais que compõem as ideologias relacionam-se umas às outras, sua relevância empírica em face da realidade, a tolerância da ideologia a ideologias concorrentes e às inovações dentro de seu próprio corpo de crenças, o grau de comprometimento dos componentes do veículo social em que uma dada ideologia circula, e a percepção de seus adotantes de que aquele sistema de crenças representa uma “verdade eterna”. Esses parâmetros partem de uma compreensão dos mecanismos ideológicos que leva em conta as interações entre a ideologia dominante em um determinado contexto, os mitos que originam as ideologias em voga e as utopias que direcionam a ação dos adeptos.


Notas

[1] Referência ao conceito de “fetiche da mercadoria” utilizado por Marx em O Capital (2011).

[2] Sistemas impuros são aqueles cujos elementos são objetos e sujeitos, sendo os sujeitos os seres humanos imbricados no sistema, e os objetos as significações e interpretações originárias das crenças perceptuais dos sujeitos e suas relações. Se diferem dos sistemas puros/abstratos por não possuírem entidades e relações puramente matemáticas e abstratas.


Referências

ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Tradução de Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.

BENJAMIN, Walter. A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica. São Paulo: LP&M, 2018.

EAGLETON. Terry. Ideologia, uma introdução. Segunda edição. São Paulo: Fundação Editora UNESP, 1999.

HALL, Stuart. Da Diáspora: Identidades e mediações culturais. Org. Liv Sovik. Tradução por Adelaide La Guardia Resende et al. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.

HERMAN, Edward S.; CHOMSKY, Noam. Manufacturing Consent: The Political Economy of the Mass Media. Londres: The Bodley Head, 2008.

MARX, Karl. O Capital. Livro I. Tradução de Rubens Enderle. Segunda edição. Coleção Marx & Engels. São Paulo: Boitempo Editorial, 2011.

NESCOLARDE-SELVA, Josué Antonio; USÓ-DOMÉNECH, José-Luis; GASH, Hugh. “What Are Ideological Systems?”. Systems. V. 5. N. 1. 2017. Disponível aqui — Acesso em 19 de junho de 2018.

THOMPSON, Denise. Radical Feminism Today. Londres: SAGE Publications, 2001.

VIEIRA PINTO, Álvaro. O Conceito de Tecnologia. v. 1. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005.

WILLIAMS, Raymond. Marxismo e Literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.

Resenha: World War Z (2006)

Quando iniciou a pandemia, resolvi ler o World War Z do Max Brooks. Não é o tipo de literatura que costumo ler — não que eu tenha lido muita literatura nos últimos anos, e ainda houve um momento na última década que eu não conseguia ouvir a palavra “zumbi” sem revirar o zoinho —, mas justamente isso, somados a elogios de amigos e o fato de o autor ser filho daquele outro Brooks me motivaram. Aliás, o fato de estarmos em uma pandemia sem precedentes de proporções globais e esta entrevista do autor também influenciaram a decisão.

A ideia geral do livro é bastante interessante, resumida no subtítulo: consiste em uma história oral da guerra zumbi, uma coletânea de entrevistas com depoimentos dos mais variados agentes que tiveram algum papel na contenção daquela pandemia. É uma extensão de um livro anterior, uma aplicação prática do Zombie Survival Guide que o autor publicou em 2003. Apesar da proposta e do formato interessante, tive trabalho pra terminar a leitura, e a culpa nem foi dos zumbis.

Depois que o plot inicial (bom, por sinal) se exaure, tudo fica muito chato — a pandemia começa na China, que treta com Taiwan e a porra toda explode em países subdesenvolvidos através de tráfico de órgãos; qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. Toda a narrativa parece existir em função de exibir os conhecimentos bélicos e geopolíticos do autor — veículos de terra e ar, rifles, bases, armas e equipamentos em geral, a posição estratégica de sei o que lá etc. A premissa dos conflitos políticos e até a crítica social foda acaba se perdendo no meio dessa nerdarage tediosa.

O problema principal, imho: não existe voz, todos os personagens soam iguais. Complicado de resolver, dado que o livro consiste dessas centenas de depoimentos e é realmente difícil individualizar personagens desse jeito [*]. Depois do primeiro parágrafo de cada depoimento, que existe ali mais pra contextualizá-lo, tudo parece muito mais do mesmo, independente de o fato narrado ter se passado na China ou em uma base militar na Sibéria. O uso de termos específicos de algum idioma não salva o texto dessa voz mono, o que me fez adotar a estratégia da “leitura dinâmica” (hehe!) para me forçar a terminar o negócio; chegar ao fim foi questão de honra mesmo.

Brooks é mais um daqueles autores que conseguem criar um mundo bem interessante, mas na hora de povoá-lo com personagens a coisa não anda. Talvez a versão cinematográfica (2013) seja melhorzinha nesse sentido de construção de personagens: Hollywood tem ferramentas razoavelmente competentes para esse tipo de adaptação, vamos ver se tenho saco pra ver no que deu.


[*] Um livro do escritor chileno Roberto Bolaño conseguiu essa proeza, de certa forma, em um formato semelhante e sem deixar o texto maçante: a sátira La Literatura Nazi en America usa o formato de “enciclopédia” para contar a vida de uma série de personagens.

Dados, algoritmos, termos de uso e jardins murados

O texto abaixo foi escrito originalmente como parte de um projeto de pesquisa para a seleção do doutorado em Ciência Política da UFPR em 2018. Bati na trave no processo seletivo, mais ainda gosto muito do que produzi e deixo aqui para apreciação de quem, como eu, se interessa por esses temas. Em breve publico mais um pedaço dele.


Os últimos dez anos foram decisivos para a consolidação da internet como recurso de uso cotidiano. Pesquisas recentes mostram que, ainda que o crescimento da venda de computadores tenha desacelerado, os brasileiros têm estado cada vez mais conectados, principalmente por meio de dispositivos móveis. No início de 2017 havia mais de um celular por habitante no país, e mesmo no ano anterior mais de 90% dos domicílios brasileiros contava com pelo menos um smartphone.

Conforme essa integração da internet móvel se expandiu e se normalizou, ela trouxe consigo mudanças de hábito na vida de seus usuários: eles mesmos constroem ideias e imagens de si e do seu entorno para si e para os outros — em plataformas online de discussão — e todas essas construções, espontâneas ou provocadas, geram dados. Uma vez que as dimensões do “real” e do “virtual” não são facilmente dissociáveis (LÉVY, 1997), as atividades dos usuários acontecidas nessas plataformas e os dados que produzem geram traços e podem dizer muito sobre a realidade social em que cada usuário se insere.

Se o usuário não é uma peça passiva nas relações sociotécnicas em rede, tampouco são as plataformas por onde ele navega. Projetadas por humanos, o funcionamento desses sistemas estão de acordo com políticas de uso que muitas vezes não são claras em suas intenções e consequências. Os algoritmos que governam suas ações são formas abstratizadas de se resolver problemas complexos ou criar ordem em um conjunto de dados, dividindo sua atividade em uma série de passos ou etapas lógicas. Os dados gerados pelos usuários alimentam modelos matemáticos dos comportamentos e atitudes individuais com aplicações amplas o suficiente para preocupar governos e organizações [1].

De usos mais “inofensivos”, como no caso da arte generativa e de projetos que analisam dados abertos governamentais, como a Operação Serenata de Amor, essas técnicas de coleta e análise de dados também podem alimentar bases de ferramentas para reconhecimento facial que podem ter propósitos militares e comprometer liberdades civis, ou ainda gerar algoritmos que herdam os vieses e preconceitos de seus criadores e emitem julgamentos tão falhos quanto os de seus espelhos humanos.

Outra dimensão da complexidade desses sistemas sociotécnicos são as suas repercussões legais. No final de 2017, foi aprovada no congresso americano uma lei que modificava as antigas regras de tráfego de dados e dava às operadoras a possibilidade de cobrar dos usuários de forma diferente conforme a origem e a quantidade de dados que utilizassem em seus planos de assinatura. Caso ainda estivesse em vigor, essa lei poderia permitir a restrição de certos tipos de conteúdos mediante pagamento e a possibilidade de que grandes conglomerados midiáticos pudessem pagar mais para que seus conteúdos tivessem preferência na rede [2]. Dadas todas as suas implicações, ela foi revogada em maio de 2018, mas as discussões a respeito continuam, pois não existe ainda uma legislação satisfatória. No Brasil, é a lei n. 12.965 do Marco Civil da Internet, que regula esse tráfego de dados — e também outros temas, como a liberdade de expressão e a retirada de conteúdo difamatório do ar — e substitui a lei antiga, inespecífica.

A preocupação com a criação de “jardins murados” [3] na internet a partir do controle da circulação de dados não se restringe às operadoras de serviços de conexão, no entanto. Não muito diferente são as abordagens de algumas grandes empresas como Facebook e Google a situações de diferentes naturezas, mas com implicações semelhantes. No caso do Facebook, sua estratégia para penetração em “mercados periféricos” foi a de permitir o acesso gratuito a sua plataforma sem cobrança pelo plano de dados dos usuários. O Google, por sua vez, faz uso da tecnologia AMP na tentativa de tornar o carregamento das páginas mais rápido em ambiente móvel e, com isso, acaba ele mesmo decidindo o que será ou não exibido online. A empresa acabou abrindo o código do projeto e passou a discretamente se desassociar dele em seu site, mas é seu principal incentivador. Em ambos os casos, essas empresas acabam atuando como “a internet propriamente dita” para alguns usuários, criando um ambiente controlado restritivo, uma vez que é a partir de seus filtros que o acesso à rede acontece.

Quando a internet comercial começou a atingir grandes populações através de aumento do acesso, flexibilidade e barateamento da conexão e dos aparatos que a tornam possível (computadores, telefones móveis), fenômenos de movimentação política como a chamada “Primavera Árabe” [4] e projetos como WikiLeaks [5] começaram a despontar. Alguns estudiosos da Comunicação interpretaram essas manifestações como representantes legítimos de um poder popular de resistência a governos opressores e a favor da livre circulação de ideias (LEVY, 1997; MALINI e ANTOUN, 2013). Eles não puderam, no entanto, prever alguns dos desdobramentos das forças em “contra-revolução”. Os sistemas sociotécnicos onde essas tecnologias de informação e comunicação existem e atuam possuem como vantagem justamente o fato de serem sistemas fechados — “caixas-pretas” (FLUSSER, 1985) —, inacessíveis a usuários em geral, e a leigos em particular.

Se antes se achava que a distribuição de conhecimento e as trocas culturais seriam dinamizadas, aceleradas e democratizadas através das redes pelo efeito da “cauda longa” [6], casos como o da Cambridge Analytica [7] e outros onde houve o uso dos dados dos usuários para criar consenso, manipular a opinião pública e mobilizar massas mostram desafios ainda mais complexos. O poder dos conglomerados de mídia pode ter se tornado objeto de disputa, mas ele não se perdeu totalmente: antes, tem sido repartido entre novas e antigas organizações, que têm como fator de sucesso principal a ignorância dos usuários diante das plataformas.

A forma como os dados circulam na rede nessas plataformas depende de alguns fatores. Um deles são os Termos de Uso (ou Termos de Serviço), documentos com especificações legais que regulam o uso das plataformas e que, em caso de aceite, determinam que os usuários voluntariamente cedam algumas de suas informações à plataforma. Muitas vezes, isso é feito sem que haja uma leitura cuidadosa desses documentos, seja por causa de sua extensão textual ou do uso que fazem de linguagem jurídica obscura. Aliadas às APIs (Application Programming Interfaces) de desenvolvimento — ferramentas que permitem a criação de aplicações externas que funcionam a partir das possibilidades dessas plataformas, e alimentadas por elas —, o ambiente para que usuários sejam objetos das transações no comércio de dados está montado. Uma API como a do Facebook, por exemplo, permite integrações com hardware e software que possibilitam a coleta em massa de dados e seu uso em propósitos genéricos, que vão desde a observação de comportamento de consumidor até a difusão de conteúdo de origem duvidosa [8].

Alguns projetos, porém, visam usar os dados disponíveis nessas plataformas para conduzir pesquisas na área da ciência de dados. É o caso do Instituto Brasileiro de Pesquisa e Análise de Dados, do Monitor do Debate Político no Meio Digital e do LABIC da Universidade Federal do Espírito Santo. As análises conduzidas por esses grupos e organizações têm como objetivo a criação de cartografias e grafos das discussões online e de seus principais temas. Eles fazem uso de técnicas como processamento de linguagem natural (PLN) — apropriado para encontrar polaridades nos enunciados discursivos dos usuários —, e a relação dessas informações com sua fonte geográfica/geolocalizada, quando disponível — útil como camada complexa de informação que pode permitir a criação de mapas e o encontro de sutilezas que a PLN sozinha não é capaz de proporcionar.


Notas

[1] Uma dessas aplicações é a possibilidade de criar robôs que imitam o comportamento dos usuários. Sistemas de aprendizagem de máquina, dentro de certos contextos, podem se fazer passar por usuários legítimos em experimentos como o Teste de Turing (SAYGIN et al., 2000).
[2] Táticas de priorização de dados na tentativa de otimizar o uso da banda são relativamente comuns. Conhecidas como traffic shaping, essas práticas são condenadas por alguns órgãos de defesa do consumidor, uma vez que restringem o uso da rede de forma irregular.
[3] “Walled gardens” é uma expressão que tem sido usada no jornalismo de tecnologia para sinalizar sistemas fechados de software que têm alto controle sobre as possibilidades de ação do usuário na plataforma, e também a respeito do que fazer com os dados gerados pelos usuários nesses ambientes.
[4] “Primavera Árabe” é uma expressão usada para designar os movimentos civis acontecidos a partir do final de 2010 em países do Oriente Médio e norte da África que tiveram como ponto de partida a Tunísia e se espalharam pela região. Organizados e mobilizados através da internet, esses movimentos foram combatidos violentamente pelos governos estabelecidos. Alguns deles resultaram em conflitos armados, governos substituídos ou instabilidade política (HUSSAIN; HOWARD, 2013).
[5] A WikiLeaks é uma organização especializada em análise e publicação na internet de dados governamentais restritos relacionados a corrupção, guerra e espionagem. Fundada em 2006 por Julian Assange, a organização esteve envolvida em vários casos de vazamentos de dados que ocasionaram conflitos diplomáticos. Um desses conflitos, envolvendo dados sobre a Guerra do Afeganistão, culminou em um mandado de extradição de seu fundador para a Suécia, através de uma acusação de assédio sexual e estupro. Crimes graves, mas que em geral não mobilizam forças internacionais caso não haja outros interesses vinculados na acusação.
[6] “Cauda Longa” designa distribuições estatísticas decrescentes cujas representações gráficas seguem o padrão da curva de Pareto. O termo foi usado por Chris Anderson na primeira metade da década de 2000 para descrever as mecânicas de distribuição cultural em rede que poderiam concorrer diretamente com as grandes mídias (ANDERSON, 2006). No entanto, ainda que a princípio esses conglomerados da indústria cultural tenham sofrido certa desestabilização, sua adaptação ao novo contexto tem sido bastante bem sucedida (SLEE, 2017).
[7] Cambridge Analytica foi uma empresa especializada em marketing digital com fins eleitorais e comerciais que fazia uso de dados disponíveis em grandes plataformas sociais online. Em maio de 2018, a empresa foi alvo de uma investigação envolvendo a disseminação de notícias falsas no Facebook e o uso de dados de dez milhões de seus usuários de forma irregular, no intuito de influenciar as opiniões e os resultados de disputas políticas nos Estados Unidos, Reino Unido e mais uma série de outros países. O escândalo veio a público após Christopher Wylie, ex-funcionário da empresa, vazar informações sobre as operações de seus empregadores.
[8] A despeito das tentativas frustradas de combater a difusão de boatos na plataforma Facebook, seu criador segue tentando: em março de 2018, Mark Zuckerberg anunciou uma série de medidas e parcerias com agências de fact checking para melhorar a qualidade do conteúdo que circula na rede social.


Referências

ANDERSON, Chris. A Cauda Longa: a nova dinâmica de marketing e vendas. 1ª edição. São Paulo: Elsevier, 2006.

FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa Preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. São Paulo: Editora Hucitec, 1985.

HUSSAIN, Muzammil M.; HOWARD, Philip N. “What Best Explains Successful Protest Cascades? ICTs and the Fuzzy Causes of the Arab Spring”. In: International Studies Review. V. 15, N. 1. 1 March 2013. P. 48–66. Disponível neste link — Acesso em 6 de junho de 2018.

LÉVY, Pierre. Cibercultura. Tradução de Carlos Irineu da Costa. São Paulo: Editora 34, 1997.

MALINI, Fábio; ANTOUN, Henrique. A Internet e a Rua: ciberativismo e mobilização nas redes sociais. Porto Alegre: Sulina, 2013.

SAYGIN, Ayse P.; CICEKLI, Ilyas; AKMAN, Varol. “Turing Test: 50 years later”. In: Minds and Machines. V. 10. N. 4. Novembro de 2000. p. 463-518. Disponível neste link — Acesso em 18 de junho de 2018.

SLEE, Tom. Uberização: a nova onda do trabalho precarizado. São Paulo: Editora Elefante, 2017.

Compreendendo o Feminismo: THOMPSON, 2001

A autora Denise Thompson

O texto abaixo é um fichamento para uso pessoal que fiz de duas pequenas seções do livro Radical Feminism Today, de Denise Thompson. É um livro curto, claro e bem escrito, direto ao ponto e, provavelmente, um dos meus livros feministas favoritos. Me foi apresentado anos atrás em um grupo de estudos independente do qual participei e que infelizmente teve vida curta. As seções fichadas abaixo são os capítulos 1 e 4. As citações estão no original em inglês, mas é possível encontrar uma tradução do capítulo 1 aqui, e do capítulo 4 aqui. Boa leitura!


Referência bibliográfica

THOMPSON, Denise. Radical Feminism Today. Londres: SAGE, 2001.


Introdução (P. 1-4)

A rotulagem de abordagens e a separação do feminismo em “vertentes” abre espaço no movimento para que linhas de pensamento — que não identificam a dominação masculina e nem a combatem — possam se autoidentificar como feministas. Essa tendência a uma recusa de se identificar a dominação masculina é observada principalmente na academia, um espaço tradicionalmente masculino de pensamento que não abre espaço para posições mais críticas, principalmente quando essas críticas abordam a dominação masculina dentro do campo propriamente dito. Os trabalhos feministas que mais diretamente identificam a dominação acabam sendo classificados de forma pejorativa dentro do pensamento acadêmico.

O trabalho da Denise Thompson não tem a intenção de separar quem é feminista e quem não é. Mas definir o que é feminismo é importante principalmente porque não dá para o feminismo continuar se desenvolvendo enquanto movimento se ele continuar a ser definido implicitamente como qualquer coisa que diga qualquer pessoa autoidentificada como feminista.

A autora vai apontar que a teoria feminista emerge da prática política das mulheres. Ela especifica aqui o feminismo radical, mas no pensamento dela “feminismo radical” é feminismo propriamente dito. Por causa disso, a teoria em si não é explícita, e também por causa disso ela não é bem-vinda na academia — e nem tem a pretensão de ser bem recebida por lá. O objetivo da teoria feminista é expor as práticas da dominação masculina, e não criar teoria em função de teoria.

“[…] feminism as a moral and political struggle of opposition to the social relations of male domination structured around the principle that only men count as ‘human’, and as a struggle for a genuine human status for women outside male definition and control.” (P. 4)

Definindo o feminismo (P. 5-21)

Existe muita hesitação na teoria feminista em se definir o feminismo, de modo que muita coisa contraditória e até mesmo anti-feminista acaba ficando mascarada como parte do movimento. A autora argumenta que definir os termos auxilia no desenvolvimento do debate, porque permite ao leitor também fazer parte dele e construir significado. Definir, segundo ela, não limita algo de forma definitiva, mas permite que as autoras assumam a responsabilidade pelo que estão dizendo.

Existe uma ênfase na teoria feminista de se definir a posição das mulheres como “socialmente construída”, na busca por combater as explicações que naturalizam a opressão. Thompson argumenta que este é um uso limitado dessa ideia — que nem é exatamente nova e vem da sociologia — se ela não estiver associada a uma análise que aponte de que tipo de sociedade nós estamos falando. Ela também argumenta que o feminismo está no campo da moral e da ética porque visa a mudança social. Além disso, a política feminista é diferente do uso tradicional da palavra “política” (genérica), porque aponta as interseções entre o público e o privado e as formas como a opressão e a exploração das mulheres acabam não reconhecidas por estarem no domínio privado, e questiona essa dicotomia.

“Women cannot be ‘equal’ with men as long as there is no equality among men. In feminist terms, what women want is a human status where rights, benefits and dignities are gained at no one’s expense, and where duties and obligations do not fall disproportionately on the shoulders of women. Such a project promises to transform politics altogether.” (P. 8)

O desafio do feminismo é a dominação masculina: identificar como ela funciona e combatê-la. A dominação masculina, por sua vez, é um processo social que não torna os homens beneficiários dela totalmente poderosos em relação as mulheres, bem como não torna as mulheres seres totalmente incapazes sob seu domínio. Mas, como se trata de uma estrutura social, ela está incrustada na realidade cotidiana e na mente das pessoas, tanto dos dominadores quanto das dominadas. Além disso, a dominação masculina não é um sistema monolítico e hegemônico, mas se adapta conforme o contexto e as ações dos indivíduos em sociedade.

A autora discute algumas formas de teorizar o “poder”, que o enxergam como “restrições” e “habilitações” socialmente negociadas no sentido de cumprir objetivos coletivos (poder-enquanto-capacidade). Mas ela questiona isso como uma visão que indica um ethos masculino, que assume maior liberdade de ação social, porque não enxerga o poder como uma ferramenta de dominação quando mal distribuído (poder-enquanto-dominação). Uma perspectiva feminista deve levar em conta as formas sutis e não deliberadas de exercício desse poder, e a manutenção da ignorância das dominadas no sentido de não se verem como subordinadas e contribuírem para sua própria dominação.

“Because women are not human within the terms and under the conditions of male supremacy, they are not allowed access to the rights and dignities of being human. Because women are not recognized as human, they can be treated with contempt. What happens to them does not matter, their needs do not have to be considered, their interest can be trivialized and denied. Because women are not human they become nothing but objects for men’s use. This creates a contradiction at the heart of the world order that is male supremacy. The chief contradiction structuring and rupturing male supremacist conditions is the existence of women which continually gives the lie to the male as the standard of ‘human’ existence, a lie which is managed by acknowledging women only to the extent that they serve men’s interests.” (P. 12)

A autora também argumenta que a desumanização das mulheres também desumaniza os homens, porque a tirania da dominação corrompe o caráter humano dos homens. Ela continua dizendo que o aspecto que mais recebeu atenção dentro do feminismo é o seu foco na mulher e na busca por sua humanização; isso leva a discussões infinitas e inúteis sobre o que está envolvido na categoria “mulher”, o que também leva à divisão das mulheres em múltiplas e incompatíveis categorias sociais. Ainda que o centro e o ponto de partida do feminismo sejam as mulheres, é a sua oposição à dominação masculina que o caracteriza como relevante às mulheres.

Thompson fala um pouco sobre o lesbianismo no feminismo como uma forma das mulheres se reconhecerem entre si como humanas sem o homem como referente ou ponto de partida. Ela também fala sobre como o lesbianismo como prática sexual foi sequestrado pelos liberais, que colocaram o sexo em termos de “corpos e prazeres”, longe da crítica política, definindo o lesbianismo meramente como uma preferência sexual de uma minoria de mulheres individuais. O lesbianismo, no entanto, questiona a natureza do desejo heterossexual, que coloca a excitação e a realidade na subordinação das mulheres pelos homens.

A partir da discussão do lesbianismo ela entra na discussão do separatismo, como sendo uma forma de política que envolve a recusa de participar das relações de dominação dentro da supremacia masculina. Trata-se de uma necessidade estratégica para se organizar de forma independente dos propósitos dos homens, e não um fim em si mesmo; a dominação masculina é uma forma de organização social que envolve homens e mulheres, e se isolar do convívio com homens é bem pouco realista.

“Women’s exclusion from positions of power and influence has a purpose — to keep the majority of women tied to men, promoting male interests, nourishing and fostering male subjectivities, doing the work and providing the ground from which men can launch themselves into those projects so highly valuable within male supremacist conditions.” (P. 15)

O campo de ação do feminismo é o significado. Uma vez que o significado está em toda parte, também está a luta feminista. Assim, o feminismo pode acontecer onde quer que as mulheres estejam, e avançar onde quer que as mulheres avancem. A autora defende que a definição de feminismo apresentada por ela é a definição de feminismo, sendo ampla o suficiente para incluir várias formas de políticas feministas, e também suficientemente específica para identificar e excluir argumentos anti-feministas. Ela também diz que se referir a feminismo no plural é uma evasiva frente às contradições das asserções que competem entre si, muitas vezes anti-feministas, feitas em nome do feminismo.

Thompson vai argumentar que o feminismo acontece a partir de um ponto de vista feminista, que precisa ser especificamente feminista para não incluir as formas como as mulheres abraçam sua própria opressão, e excluir as formas mais essencialistas/particularistas de se enxergar as ações das mulheres (empatia, cuidado, vivência etc). O ponto de vista feminista identifica, questiona e se opõe a dominação masculina; essa consciência parte do reconhecimento da posição social das mulheres enquanto estruturada pela dominação masculina.

“Feminism is a thouroughgoing critique of male domination wherever it is found and however it is manifested. It is a working towards ending male impositions of whatever form, in the creating of a community of women relating to women and creating our own human status that is unencumbered by meanings and values which include women in the human race on men’s terms or not at all. That can only be done from a standpoint which recognizes the existence of the social order of male supremacy which allows a ‘human’ status only to men, a standpoint which involves a struggle to reinterpret and rearrange the world so that women can be recognized as human too.” (P. 21)

Feminismo indefinido (P. 53-58)

Nessa parte, autora vai buscar definições de feminismo, começando por dicionários feministas. Como a maior parte desses dicionários não especifica o termo ou o define de forma muito vaga em função de uma certa diversidade de abordagens, Thompson vai partir do próprio entendimento das autoras de suas intenções e objetivos com essas obras. Ela chega à conclusão que, apesar de as autoras terem clara para si a ideia de feminismo enquanto oposição das mulheres à dominação masculina, isso aparece apenas nos textos introdutórios ou de apresentação, e não no texto propriamente dito.

A maior parte das definições que ela encontra define o feminismo como uma preocupação das mulheres no exercício de sua cidadania ou baseada na sua experiência. A definição de Karen Offen aborda a dominação masculina como ponto crucial da política feminista, mas se preocupa com o feminismo como força antagônica, propondo um “feminismo relacional” que reconheça as contribuições próprias das mulheres, que somente elas podem prover (gestar, nutrir etc). Thompson aponta que a autora falha em reconhecer de onde vem o antagonismo direcionado ao feminismo: o problema do feminismo não é que as mulheres exerçam determinadas atividades (caso exerçam), mas sim o papel de subserviência que as mulheres exercem aos homens pela realização dessas atividades, nutrindo-os sem esperar reciprocidade.

Thompson questiona também os trabalhos que pensam a dominação masculina como uma forma de dominação não universal/generalizável na vida social humana, denominada por vezes de forma eufemística como “sistema sexo/gênero”. Aqui ela aponta também o trabalho de Judith Butler e sua acusação de que as teorias feministas que apontam muito claramente a opressão das mulheres são generalizantes ou visões coloniais sobre culturas não-ocidentais. Enquanto a maioria dos trabalhos evita o assunto da dominação masculina como sendo o principal antagonismo do feminismo, Butler vai além, se opondo inclusive à ideia de que existe uma dominação dos homens sobre as mulheres. Thompson critica o argumento de Butler, dizendo que ela não apresenta nenhuma evidência de sua acusação de “falso universalismo”, e que apenas adjetiva de forma pejorativa certas formas teóricas (que ela não identifica) como “noções altamente ocidentais”. Butler, por vezes, reconhece que a dominação masculina também existe no “Ocidente”, mas aparentemente ela não vem de lugar algum.

Identificar a causa da subordinação das mulheres na dominação dos homens não significa universalizar uma noção ocidental. Mesmo no ocidente, a dominação masculina assume as mais variadas formas, mas sempre acontece às custas das mulheres. A autora explica que essa relutância em nomear e identificar a dominação dos homens acontece porque essas autoras querem evitar caracterizar as mulheres enquanto “vítimas”. Identificar as mulheres como vítimas dos homens poderia, na visão dessas autoras, fazer as mulheres se sentirem aprisionadas e passivas diante da violência. Algumas obras do “feminismo acadêmico” afirmam que caracterizar as mulheres como vítimas inocentes e destituídas de poder seria uma forma de “generalizar a experiência das mulheres brancas”, mais uma vez sem apresentar nenhum trabalho feminista que utilize um argumento desse tipo desse modo como exemplo.

O problema com essa recusa de se apontar o antagonismo do feminismo é que ela (a recusa) interpreta a dominação masculina como inevitável e monolítica. Se a busca do feminismo é por acabar com essa dominação e por formas diferentes de ser humanas, fica claro que ele não define as mulheres somente enquanto vítimas. Esses argumentos também falham em ver que o apontamento da opressão ajuda as mulheres a se livrarem desse papel perpétuo de vítimas, identificando a opressão enquanto tal e não como algo pessoal ou próprio das condições daquela mulher específica.

A dor não vai ser diminuída utilizando eufemismos ou mostrando mulheres como poderosas quando elas não o são. Nomear a dominação dos homens é reconhecer os pontos de resistência e colaboração que as mulheres têm com essa dominação. Nomear a dominação dos homens também ajuda a quantificar o tamanho do dano causado às mulheres.

Operação Fura-Catraca: alguns números do transporte coletivo de Curitiba

Na tentativa de preencher o tempo vago que me sobra enquanto desempregada e estudar temas que podem me ser úteis no futuro, resolvi dar uma olhada nos dados de transporte urbano da URBS pra ver se dava pra dar uma penteada neles no intuito de encontrar informações interessantes. O problema é que a instituição praticamente não disponibiliza nenhum dado: tudo o que há lá são estatísticas genéricas, como quilometragem rodada e quantidade média de passageiros diária. Respirei fundo e fui fazer outra coisa.

Entre as outras coisas que eu tenho para preencher o tempo estava um curso de capacitação em uma universidade no centro. Saindo do biarticulado na Estação Central, recebo o flyer da fotografia abaixo.

Resumindo para deixar anotado aqui: segundo o folheto, aproximadamente 4 mil pessoas furam catraca todos os dias no transporte urbano de Curitiba. Parece muito jogado assim, mas a título de comparação, entre 2015 e 2018 a Rede Integrada de Transporte carregou em média entre 1,6 e 1,3 milhão de passageiros por dia. Estes são apenas os números de Curitiba, porque desde 2015 não existe integração com o transporte urbano da região metropolitana — o que significa também uma falta de integração no que se refere aos dados que essas empresas recolhem e divulgam. Aliás, não se diz em lugar algum — seja no folheto, nas mídias oficiais, ou nas reportagens dos últimos tempos sobre a operação — como esse dado é calculado, mas acredito que seja um saldo dos dados coletados pelas próprias catracas que controlam entrada e saída de pessoas nos ônibus e nos terminais.

O folheto continua dizendo que a cidade perde [note o uso do termo] R$ 6 milhões por ano “com esse tipo de atitude”, o que, segundo eles, “é o valor de 5 biarticulados novinhos”. Esse valor é uma média do valor bruto que a URBS deixa de arrecadar com essas por volta de 4 mil pessoas que não pagam os R$ 4,50 da passagem todos os dias.

No meu entender [1], visto que não há depredação do patrimônio especificamente no que diz respeito ao ato de pular catraca, não é exatamente um prejuízo direto. Mas também não estou querendo dizer que a empresa de transporte não tenha motivos para deflagrar as operações que julgue necessárias para coibir atitudes que prejudiquem o pleno funcionamento do sistema; a segurança em algumas linhas de ônibus daqui é um problema real. Essa operação em específico é que provavelmente é um erro. O que estou realmente querendo dizer é que furar catraca não é o X dessa questão.

Se você fizer uma conta simples como uma regra de três vai descobrir que o número de passageiros que pula catraca corresponde a 0,3% dos usuários de transporte urbano de Curitiba. Sinceramente, não sei dizer se este é um número razoável ou alto; a princípio me parece pouco para justificar uma operação tão propagandeada na mídia (em várias mídias), e mais adiante explico porquê, o tal X da questão. Não encontrei números de outras cidades para poder realizar uma comparação. No Google, só achei notícias sobre esta mesma operação em Curitiba e sobre tentativas semelhantes de aplicar políticas de vigilância/segurança em Belo Horizonte, mas sem estimativas ou dados do tipo.

Agora, por que este me parece um número quase ridículo para justificar uma operação desse porte? Saca só o gráfico abaixo:

Os números são exibidos somente com rollover, e por isso não aparecem no print.

Vamos considerar apenas os dados a partir de 2015, por motivos óbvios. Naquele ano, 1.619.647 passageiros passaram pelos ônibus curitibanos. No fim do período grafado, em 2018, foram 1.365.615 passageiros. Isso quer dizer que 254.032 pessoas simplesmente pararam de utilizar o transporte urbano todos os dias em Curitiba, uma variação percentual de -15,68%. Isso equivale a R$ 1,14 mi a menos nos cofres da URBS todos os dias desde 2015 — cinco biarticulados novos por semana! O preço da tarifa sofreu um aumento de 22,35%, indo de R$ 3,30 a R$ 4,25. Todos os números sobre uso divulgados pela URBS apontam queda, com exceção do número de usuários do cartão transporte, que se manteve estável e foi ligeiramente puxado pra cima pela abolição dos cobradores nos ônibus troncais amarelos. O curitibano está pagando mais para viajar menos, em menos ônibus, por um trajeto menor.

Do ano de 2017 pra 2018, essa queda no número de usuários representou uma variação negativa de 2%, menos que o número alegado de usuários não pagantes. Mas entre 2016 e 2017, a queda no número de passageiros foi de quase 8%, e de quase 7% no período anterior a este. Isso significa que, depois de um período de quedas significativas em sequência, o número de usuários acabou se estabilizando, ainda que em tendência de queda — não é todo mundo que pode aderir ao Uber [2], ainda que muitas de suas viagens custem tanto quanto ou menos que uma passagem de ônibus.

A forma de funcionamento da Operação Fura-Catraca — equipes de homens armados e motorizados vigiando estações-tubo, “devidamente identificados, para orientar sobre o modo correto de utilizar o sistema de transporte” — me parece, como usuária de ônibus da capital paranaense há mais de uma década, no mínimo ineficiente. Ações para a melhora do sistema, que de fato estimularia mais gente a fazer uso dele, nunca se estendem para além da substituição obrigatória dos veículos antigos. Em compensação, grades horrorosas para atrapalhar o embarque pelas portas 2 e 4 dos biarticulados — e atrapalhar o desembarque —, vez em quando aparecem por aí, principalmente naquelas estações próximas a escolas.

Segundo o material de divulgação da URBS, a operação não faz uso de recursos públicos para funcionar e é, antes, uma ação em consórcio entre as várias empresas que atuam no transporte. Isso pode parecer um alívio, mas o que pega nisso tudo, o que me deixou incrivelmente incomodada, o que realmente me colocou em movimento para chegar a esses dados (além da experiência como infografista) é a forma como essa campanha foi codificada. Toda a linguagem da campanha parece culpabilizar justamente o lado mais prejudicado nesse aspecto do urbanismo: quem de fato faz uso do transporte público e paga por ele. Tomando a forma de uma operação de vigilância, a ideia por trás da Pula-Catraca é nos fazer agradecer de joelhos à URBS pelos R$ 4,50 da passagem, porque a passagem poderia ser muito, muito mais cara.


Notas

[1] Não que eu seja algum tipo de autoridade, mas pelo menos sou curiosa.

[2] O Uber começou a operar em Curitiba em 2016 e pode ter sido um dos responsáveis pela queda no uso do transporte urbano. Mas o uso do Uber não seria necessário ou tão crescente com transporte coletivo de qualidade. O Uber em si é todo um outro problema social complexo por si só.