O texto abaixo é um fichamento para uso pessoal que fiz de duas pequenas seções do livro Radical Feminism Today, de Denise Thompson. É um livro curto, claro e bem escrito, direto ao ponto e, provavelmente, um dos meus livros feministas favoritos. Me foi apresentado anos atrás em um grupo de estudos independente do qual participei e que infelizmente teve vida curta. As seções fichadas abaixo são os capítulos 1 e 4. As citações estão no original em inglês, mas é possível encontrar uma tradução do capítulo 1 aqui, e do capítulo 4 aqui. Boa leitura!
Referência bibliográfica
THOMPSON, Denise. Radical Feminism Today. Londres: SAGE, 2001.
Introdução (P. 1-4)
A rotulagem de abordagens e a separação do feminismo em “vertentes” abre espaço no movimento para que linhas de pensamento — que não identificam a dominação masculina e nem a combatem — possam se autoidentificar como feministas. Essa tendência a uma recusa de se identificar a dominação masculina é observada principalmente na academia, um espaço tradicionalmente masculino de pensamento que não abre espaço para posições mais críticas, principalmente quando essas críticas abordam a dominação masculina dentro do campo propriamente dito. Os trabalhos feministas que mais diretamente identificam a dominação acabam sendo classificados de forma pejorativa dentro do pensamento acadêmico.
O trabalho da Denise Thompson não tem a intenção de separar quem é feminista e quem não é. Mas definir o que é feminismo é importante principalmente porque não dá para o feminismo continuar se desenvolvendo enquanto movimento se ele continuar a ser definido implicitamente como qualquer coisa que diga qualquer pessoa autoidentificada como feminista.
A autora vai apontar que a teoria feminista emerge da prática política das mulheres. Ela especifica aqui o feminismo radical, mas no pensamento dela “feminismo radical” é feminismo propriamente dito. Por causa disso, a teoria em si não é explícita, e também por causa disso ela não é bem-vinda na academia — e nem tem a pretensão de ser bem recebida por lá. O objetivo da teoria feminista é expor as práticas da dominação masculina, e não criar teoria em função de teoria.
“[…] feminism as a moral and political struggle of opposition to the social relations of male domination structured around the principle that only men count as ‘human’, and as a struggle for a genuine human status for women outside male definition and control.” (P. 4)
Definindo o feminismo (P. 5-21)
Existe muita hesitação na teoria feminista em se definir o feminismo, de modo que muita coisa contraditória e até mesmo anti-feminista acaba ficando mascarada como parte do movimento. A autora argumenta que definir os termos auxilia no desenvolvimento do debate, porque permite ao leitor também fazer parte dele e construir significado. Definir, segundo ela, não limita algo de forma definitiva, mas permite que as autoras assumam a responsabilidade pelo que estão dizendo.
Existe uma ênfase na teoria feminista de se definir a posição das mulheres como “socialmente construída”, na busca por combater as explicações que naturalizam a opressão. Thompson argumenta que este é um uso limitado dessa ideia — que nem é exatamente nova e vem da sociologia — se ela não estiver associada a uma análise que aponte de que tipo de sociedade nós estamos falando. Ela também argumenta que o feminismo está no campo da moral e da ética porque visa a mudança social. Além disso, a política feminista é diferente do uso tradicional da palavra “política” (genérica), porque aponta as interseções entre o público e o privado e as formas como a opressão e a exploração das mulheres acabam não reconhecidas por estarem no domínio privado, e questiona essa dicotomia.
“Women cannot be ‘equal’ with men as long as there is no equality among men. In feminist terms, what women want is a human status where rights, benefits and dignities are gained at no one’s expense, and where duties and obligations do not fall disproportionately on the shoulders of women. Such a project promises to transform politics altogether.” (P. 8)
O desafio do feminismo é a dominação masculina: identificar como ela funciona e combatê-la. A dominação masculina, por sua vez, é um processo social que não torna os homens beneficiários dela totalmente poderosos em relação as mulheres, bem como não torna as mulheres seres totalmente incapazes sob seu domínio. Mas, como se trata de uma estrutura social, ela está incrustada na realidade cotidiana e na mente das pessoas, tanto dos dominadores quanto das dominadas. Além disso, a dominação masculina não é um sistema monolítico e hegemônico, mas se adapta conforme o contexto e as ações dos indivíduos em sociedade.
A autora discute algumas formas de teorizar o “poder”, que o enxergam como “restrições” e “habilitações” socialmente negociadas no sentido de cumprir objetivos coletivos (poder-enquanto-capacidade). Mas ela questiona isso como uma visão que indica um ethos masculino, que assume maior liberdade de ação social, porque não enxerga o poder como uma ferramenta de dominação quando mal distribuído (poder-enquanto-dominação). Uma perspectiva feminista deve levar em conta as formas sutis e não deliberadas de exercício desse poder, e a manutenção da ignorância das dominadas no sentido de não se verem como subordinadas e contribuírem para sua própria dominação.
“Because women are not human within the terms and under the conditions of male supremacy, they are not allowed access to the rights and dignities of being human. Because women are not recognized as human, they can be treated with contempt. What happens to them does not matter, their needs do not have to be considered, their interest can be trivialized and denied. Because women are not human they become nothing but objects for men’s use. This creates a contradiction at the heart of the world order that is male supremacy. The chief contradiction structuring and rupturing male supremacist conditions is the existence of women which continually gives the lie to the male as the standard of ‘human’ existence, a lie which is managed by acknowledging women only to the extent that they serve men’s interests.” (P. 12)
A autora também argumenta que a desumanização das mulheres também desumaniza os homens, porque a tirania da dominação corrompe o caráter humano dos homens. Ela continua dizendo que o aspecto que mais recebeu atenção dentro do feminismo é o seu foco na mulher e na busca por sua humanização; isso leva a discussões infinitas e inúteis sobre o que está envolvido na categoria “mulher”, o que também leva à divisão das mulheres em múltiplas e incompatíveis categorias sociais. Ainda que o centro e o ponto de partida do feminismo sejam as mulheres, é a sua oposição à dominação masculina que o caracteriza como relevante às mulheres.
Thompson fala um pouco sobre o lesbianismo no feminismo como uma forma das mulheres se reconhecerem entre si como humanas sem o homem como referente ou ponto de partida. Ela também fala sobre como o lesbianismo como prática sexual foi sequestrado pelos liberais, que colocaram o sexo em termos de “corpos e prazeres”, longe da crítica política, definindo o lesbianismo meramente como uma preferência sexual de uma minoria de mulheres individuais. O lesbianismo, no entanto, questiona a natureza do desejo heterossexual, que coloca a excitação e a realidade na subordinação das mulheres pelos homens.
A partir da discussão do lesbianismo ela entra na discussão do separatismo, como sendo uma forma de política que envolve a recusa de participar das relações de dominação dentro da supremacia masculina. Trata-se de uma necessidade estratégica para se organizar de forma independente dos propósitos dos homens, e não um fim em si mesmo; a dominação masculina é uma forma de organização social que envolve homens e mulheres, e se isolar do convívio com homens é bem pouco realista.
“Women’s exclusion from positions of power and influence has a purpose — to keep the majority of women tied to men, promoting male interests, nourishing and fostering male subjectivities, doing the work and providing the ground from which men can launch themselves into those projects so highly valuable within male supremacist conditions.” (P. 15)
O campo de ação do feminismo é o significado. Uma vez que o significado está em toda parte, também está a luta feminista. Assim, o feminismo pode acontecer onde quer que as mulheres estejam, e avançar onde quer que as mulheres avancem. A autora defende que a definição de feminismo apresentada por ela é a definição de feminismo, sendo ampla o suficiente para incluir várias formas de políticas feministas, e também suficientemente específica para identificar e excluir argumentos anti-feministas. Ela também diz que se referir a feminismo no plural é uma evasiva frente às contradições das asserções que competem entre si, muitas vezes anti-feministas, feitas em nome do feminismo.
Thompson vai argumentar que o feminismo acontece a partir de um ponto de vista feminista, que precisa ser especificamente feminista para não incluir as formas como as mulheres abraçam sua própria opressão, e excluir as formas mais essencialistas/particularistas de se enxergar as ações das mulheres (empatia, cuidado, vivência etc). O ponto de vista feminista identifica, questiona e se opõe a dominação masculina; essa consciência parte do reconhecimento da posição social das mulheres enquanto estruturada pela dominação masculina.
“Feminism is a thouroughgoing critique of male domination wherever it is found and however it is manifested. It is a working towards ending male impositions of whatever form, in the creating of a community of women relating to women and creating our own human status that is unencumbered by meanings and values which include women in the human race on men’s terms or not at all. That can only be done from a standpoint which recognizes the existence of the social order of male supremacy which allows a ‘human’ status only to men, a standpoint which involves a struggle to reinterpret and rearrange the world so that women can be recognized as human too.” (P. 21)
Feminismo indefinido (P. 53-58)
Nessa parte, autora vai buscar definições de feminismo, começando por dicionários feministas. Como a maior parte desses dicionários não especifica o termo ou o define de forma muito vaga em função de uma certa diversidade de abordagens, Thompson vai partir do próprio entendimento das autoras de suas intenções e objetivos com essas obras. Ela chega à conclusão que, apesar de as autoras terem clara para si a ideia de feminismo enquanto oposição das mulheres à dominação masculina, isso aparece apenas nos textos introdutórios ou de apresentação, e não no texto propriamente dito.
A maior parte das definições que ela encontra define o feminismo como uma preocupação das mulheres no exercício de sua cidadania ou baseada na sua experiência. A definição de Karen Offen aborda a dominação masculina como ponto crucial da política feminista, mas se preocupa com o feminismo como força antagônica, propondo um “feminismo relacional” que reconheça as contribuições próprias das mulheres, que somente elas podem prover (gestar, nutrir etc). Thompson aponta que a autora falha em reconhecer de onde vem o antagonismo direcionado ao feminismo: o problema do feminismo não é que as mulheres exerçam determinadas atividades (caso exerçam), mas sim o papel de subserviência que as mulheres exercem aos homens pela realização dessas atividades, nutrindo-os sem esperar reciprocidade.
Thompson questiona também os trabalhos que pensam a dominação masculina como uma forma de dominação não universal/generalizável na vida social humana, denominada por vezes de forma eufemística como “sistema sexo/gênero”. Aqui ela aponta também o trabalho de Judith Butler e sua acusação de que as teorias feministas que apontam muito claramente a opressão das mulheres são generalizantes ou visões coloniais sobre culturas não-ocidentais. Enquanto a maioria dos trabalhos evita o assunto da dominação masculina como sendo o principal antagonismo do feminismo, Butler vai além, se opondo inclusive à ideia de que existe uma dominação dos homens sobre as mulheres. Thompson critica o argumento de Butler, dizendo que ela não apresenta nenhuma evidência de sua acusação de “falso universalismo”, e que apenas adjetiva de forma pejorativa certas formas teóricas (que ela não identifica) como “noções altamente ocidentais”. Butler, por vezes, reconhece que a dominação masculina também existe no “Ocidente”, mas aparentemente ela não vem de lugar algum.
Identificar a causa da subordinação das mulheres na dominação dos homens não significa universalizar uma noção ocidental. Mesmo no ocidente, a dominação masculina assume as mais variadas formas, mas sempre acontece às custas das mulheres. A autora explica que essa relutância em nomear e identificar a dominação dos homens acontece porque essas autoras querem evitar caracterizar as mulheres enquanto “vítimas”. Identificar as mulheres como vítimas dos homens poderia, na visão dessas autoras, fazer as mulheres se sentirem aprisionadas e passivas diante da violência. Algumas obras do “feminismo acadêmico” afirmam que caracterizar as mulheres como vítimas inocentes e destituídas de poder seria uma forma de “generalizar a experiência das mulheres brancas”, mais uma vez sem apresentar nenhum trabalho feminista que utilize um argumento desse tipo desse modo como exemplo.
O problema com essa recusa de se apontar o antagonismo do feminismo é que ela (a recusa) interpreta a dominação masculina como inevitável e monolítica. Se a busca do feminismo é por acabar com essa dominação e por formas diferentes de ser humanas, fica claro que ele não define as mulheres somente enquanto vítimas. Esses argumentos também falham em ver que o apontamento da opressão ajuda as mulheres a se livrarem desse papel perpétuo de vítimas, identificando a opressão enquanto tal e não como algo pessoal ou próprio das condições daquela mulher específica.
A dor não vai ser diminuída utilizando eufemismos ou mostrando mulheres como poderosas quando elas não o são. Nomear a dominação dos homens é reconhecer os pontos de resistência e colaboração que as mulheres têm com essa dominação. Nomear a dominação dos homens também ajuda a quantificar o tamanho do dano causado às mulheres.
Resenha MARAVILHOSA! Não é de hoje que conheço Radical Feminism Today, mas eram apenas trechos avulsos. Esse ano decidi ler a maior parte do PDF em inglês e fiquei impressionada. Ela tocou em questões que SEMPRE me incomodaram no “Feminismo”, porém, acreditava se tratar de incômodos pessoais. Hoje percebo que mesmo muito nova, eu já conseguia enxergar o desmantelamento do Feminismo como política revolucionária para atender os anseios da supremacia masculina e capitalismo.
Denise Thompson é fenomenal. O jeito dela de escrever é simples e objetivo, mas muito enriquecedor. Eu fico bastante chateada com o fato desse livro não ser tão conhecido. Na minha opinião, ele é a melhor forma de conhecer mais sobre o Feminismo Radical e as inúmeras polêmicas, distorções, políticas, etc que envolvem o movimento. Acredito verdadeiramente que muitas incompreensões sobre o movimento desapareceriam caso esse livro fosse usado como “porta de entrada”.
Infelizmente, parece que a Denise nunca mais escreveu sobre Feminismo (espero estar equivocada). Ela faz muita falta e aprendi muito com ela. A propósito, já leu o Reading Between the lines? É um livro dela que explora a sexualidade por uma perspectiva Feminista e lésbica, além de críticas muito precisas sobre o “Feminismo Socialista/Marxista”.
Denise Thompson é maravilhosa, mas não conheço a obra dela em profundidade. Vou procurar esse “Reading Between The Lines”, obrigada!