Fichamento: A Passion for Friends #2

Origens da amizade feminina: no princípio havia a mulher

RAYMOND, Janice. A Passion for Friends: toward a philosophy of female affection. Melbourne: Spinifex Press, 2001.


O primeiro capítulo do livro começa com uma retomada da visão geral masculina a respeito das relações entre mulheres. Ou melhor, começa com justamente a negação de uma possibilidade desse tipo de relação, uma vez que a versão dos estudiosos homens é uma versão centrada na hétero-realidade. Essa visão enxerga a mulher como um ser que existe para remediar a solitude masculina, conforme o Gênesis, e como um papel de apoio das produções culturais masculinas. Assim, a mulher existe uma vez que o homem tenha aceitado o seu papel evolucionário de “iniciador sexual” (fucker). É na hetero-relação entre homens e mulheres que a mulher ganha significado.

[…] not only woman but her entire affective existence was called forth by men. Therefore, man has been and always will be her destiny. For women, the original love affair is between a man and a woman. The natural relationship that men have prescribed for women is woman for man.

Em seguida, Raymond vai fazer uma retomada das formas como as mulheres constroem relações entre si. Ela inicia falando que uma genealogia das amizades das mulheres deve apontar para uma prioridade de mulheres por mulheres. Ela dá alguns exemplos a respeito de como essa prioridade acontece — como, por exemplo, os clubes de mulheres negras do século XIX, e as mulheres que chegam em altas posições em departamentos acadêmicos e preparam sucessoras de seus trabalhos —, e afirma que amizade entre mulheres acontece na liberdade delas poderem exercerem a sua prioridade por outras mulheres.

Depois, a autora destrincha alguns significados do termo cultura e aponta para uma cultura de mulheres — uma cultura que não está fixa em nenhum estado original estático. Trata-se de uma cultura das mulheres enquanto cultivadoras da sociedade; e aqui cultura é usado no seu significado corrente de “produção material, intelectual e espiritual da vida”. Nessa parte, ela faz uma nota de rodapé interessante:

Women’s culture has not been valued or extolled as have many ethnic and racial cultural traditions. Recent feminist attempts to do so have often met with the demeaning of what has come to be called “cultural feminism”.

Ela continua dizendo que uma das formas de se subjulgar um grupo particular de pessoas é destruindo as suas tradições culturais, o que geralmente envolve violência e a obliteração dos símbolos e das histórias, num processo de longo prazo em que esse apagamento é feito progressivamente.

One way in which men have distorted and dismembered woman’s origins with each other is by institutionalizing a system of primogeniture in which not only is the firstborn son considered recognized and rewarded heir to the kingdom of the father, but the father-son relationship itself is shored up as the model for important relations between men. Patriarchal primogeniture is a strategy for bolstering the traditions of homo-relations in which all sorts of father’s bequeath to all sorts of sons the keys to their kingdoms. Patriarchal primogeniture renders invisible not only firstborn daughters but the mother-daughter relationship as well. This potentially Gyn/affective bond is deprived of its power to serve as an archetype for a succession of women’s affinities with women. Instead, women are taught to disavow their affection for women. Disowned love for women is like disinherited daughters. Only men become the recognized and rewarded beneficiaries of female affection.

Raymond aponta que é na amizade entre mulheres que o feminismo encontra a sua vitalidade e radicalidade: um dos principais objetivos do movimento não é apenas melhorar as relações entre homens e mulheres, mas unir mulheres. Porque, para além de uma comunalidade de opressão, as mulheres têm uma ancestralidade comum de sobrevivência e força partilhada, e tem servido de âncoras umas para as outras ao longo da história.

Alguns exemplos são usados para trazer à tona essa união pela comunalidade de experiências entre mulheres em situações adversas. Um desses exemplos é a relação entre quatro irmãs presas em Auschwitz. Outro exemplo é do livro A Cor Púrpura, onde uma irmã intervém pela outra numa tentativa de abuso por parte do pai de ambas.

A autora conceitua então a mulher original. Segundo ela, não se trata de uma mulher original no sentido histórico, biológico ou ontológico, mas no sentido de que as mulheres criam e constantemente desenvolvem a sua própria originalidade. A mulher original seria o contrário da mulher fabricada pelos homens, domesticada para servir aos seus propósitos.

The social construction of reality has been “caused” by men who see themselves as bringing female life and love into existence. The power of men to originate all things has been a primary act of patri-genesis that has resulted in man naming himself as the creator of woman’s affections, which he has then grounded in himself. To do this, men has had to fabricate his own myths of female origins and his own creation stories. […] man’s creation of woman was hardly creative. It was disintegrative, that is, it disintegrated woman’s original Selfhood and women’s origins with other women.

Para traçar essa história das amizades femininas, Raymond vai usar o método de Foucault. O foco desse método é tratar a história como uma história de descontinuidades. Mas ela vai usar esse método de forma bastante crítica. Ela diz que, “abstratamente”, a forma de historiografia e meta-história desenvolvidas no trabalho de Michel Foucault é bastante útil para as acadêmicas feministas que estão em busca de uma construção de uma história das mulheres. Isso porque a própria história das mulheres, e mesmo o nosso presente é repleto dessas descontinuidades apontadas por ele. O problema é que o próprio trabalho do Foucault, principalmente tratando de pornografia e sexualidade, buscava uma “transgressão” que simplesmente repete toda a história de violência e degradação que as mulheres sempre conheceram.

It must be understood that “the overwhelming, the unspeakable… thrills, stupefaction, ecstasy, dumbness, pure violence, wordless gestures” were all accomplished over the degraded, mutilated, and often dead bodies of women who, without doubt, were overwhelmed, inarticulate, stupefied and made dumb.

Here we have fetishism as philosophy, pretending to expand inner human vision in the limits of transgression. Foucault would have us believe that an egg in a toilet is a profound symbol of transgression representing “our” inner experience. Never is it asked whose inner vision or whose limits are transgressed. His eye is most certainly not hers.

Daí a autora segue para análise das disciplinas que buscam entender a psique humana e que ajudaram a construir a ideia da heterossexualidade feminina. Obviamente, ela vai começar questionando as ideias de Freud e do complexo de Édipo, contrapondo-as com as de outras autoras feministas. Ela começa usando a interpretação de Dorothy Dinnerstein, de que dar-se conta de que é fêmea é estar destinada a “competir com outras mulheres pelos recursos eróticos dos homens”, ao mesmo tempo que nega a mãe/mulher, seu primeiro amor. Raymond afirma que essa autora coloca a ênfase na ausência de relações entre as mulheres e não na presença dessa relação.

Depois ela vai analisar a interpretação da Nancy Chodorow, que vê as mulheres em uma espécie de triângulo amoroso entre o amor original da mãe e a guerra constante entre mulheres pela atenção dos homens. Ao mesmo tempo, os homens não estão física ou emocionalmente disponíveis para as mulheres como suas mães estariam — ou como as mulheres estão para os homens. Uma coisa interessante que ela vai apontar no trabalho da Chodorow é a ideia de que o aparente romantismo das mulheres em relação às suas relações com homens está fundado racionalmente em uma ideia muito clara de sua dependência econômica em relação a eles.

Raymond vai questionar no trabalho da Chodorow principalmente o pressuposto de que as mulheres são inatamente heterossexuais. Primeiro porque essa assunção é contradita pelo próprio trabalho da autora: se a heterossexualidade é tão natural assim, por que é preciso tantos mecanismos de reforço, tanta restrição e tanta regra para manter as mulheres na linha?

Ela então fecha essa parte apontando que tanto o trabalho da Chodorow quanto o da Dinnerstein apresentam como solução uma participação maior dos homens na criação dos filhos. Para Raymond, isso é colocar nas mulheres a responsabilidade de transformar os homens em mães — “women must mother men to be mothers, for if women do not do so, who will?” Ela ironiza que a proposta dessas duas autoras é a mesma de filmes de comédia romântica da época, que mostravam homens como pais presentes, humanizados, cuidadores, o contrário das mães, frias ou ausentes, que saíram de casa em busca de seus “verdadeiros eus”. Ela diz que nenhuma dessas autoras mostra de onde esse homem salvador vai vir.

O próximo tema que ela aborda são as justificativas biológicas para a relação inevitável entre homens e mulheres. Raymond afirma que um dos principais argumentos nesse sentido é o de que o pênis “encaixa” na vagina. Ela demonstra com alguns exemplos que o que geralmente é tido como uma relação natural geralmente vem acompanhada de dor e trauma, e que a insatisfação sexual das mulheres em relações hétero é um dado bastante bem documentado e conhecido.

Outro argumento que justifica essa relação inevitável é o da reprodução, uma vez que o sexo heterossexual pode produzir novos seres humanos. Ela argumenta que mesmo as formas artificiais de se produzir seres humanos funcionam socialmente dentro da lógica do casamento e das relações heterossexuais. Essa naturalização tem mais haver com a manutenção de uma norma e modelo de relacionamento do que uma preocupação real com reprodução.

Daí ela vai para as formas coercitivas de produção das hetero-relações. A autora vai listar as proibições ao aborto, a maternidade compulsória, a clitoridectomia e a ooforectomia como tentativas de controle da sexualidade feminina que atestam que essa posição das mulheres é forçosamente promovida. A naturalização do estupro como um extravasamento natural da sexualidade masculina — que não existiria caso as mulheres se submetessem, nessa visão — é também usada como argumento para legitimar a existência e a legalização da prostituição.

What is important for our analysis of Gyn/affection is that it takes an enormous amount of coercive activity to create the so-called natural woman who is ever ready to satisfy in the natural man. In fact, what the natural man constantly requires is the “unnatural woman,” the woman who is man-made. To become man-made natural women, that is, unnatural women, women have to break with their originality and their origins with their original Selves and other women. This rupture, symbolized in the act of heterosexual intercourse and in all the disjunctions of hetero-relations, tears the young woman out of an original and potentially future world of women and throws her into the world of men.

Essa entrada no mundo dos homens geralmente se dá a partir da adolescência. Nessa idade, as mulheres geralmente saem dos seus convívios com professoras, amigas e mães, e toda a sua afeição e vida social voltada a mulheres acaba. Mas ainda que existam tantos obstáculos, é às vezes no “mundo natural” que as mulheres vão buscar a sua independência e transcendência.

Essa busca por uma mulher selvagem é muitas vezes confundida com promiscuidade sexual, uma vez que, para os homens, qualquer mulher livre e independente é uma “mulher fácil” (“loose woman“, no original). A atração dos homens pela virgindade das mulheres é justamente porque se trata de uma mulher fresca, a ser domada, recém-saída do mundo das mulheres. A mulher que envelhece sem ser tomada por um homem permanece tempo demais no mundo das mulheres e é, portanto, rejeitada no mundo dos homens. Uma mulher que vive independente dos homens e cujo contato com eles é apenas incidental, mas tem no centro do seu convívio as mulheres, é uma perspectiva assustadora para os homens.

Any woman-identified and autonomous woman, but especially one who has lived a long life time and the world’s of woman is perceived as not only spoiled for men but as spoiling other women for men. Gyn/affection is contagious.

O item seguinte desse capítulo busca fazer uma genealogia dessa “mulher fácil”. A mulher fácil é aquela que não está atrelada a ninguém. O problema de estar “livre” em um contexto de dominação masculina é que a mulher está livre das proteções patriarcais e também da reputação que ele confere. O simples fato de não estar atrelada a nenhum homem faz com que as mulheres sejam rotulados como prostitutas.

Raymond faze então uma genealogia do termo hetaira, que no grego originalmente significava “companheira”. Com o tempo, esse termo passou a designar a companhia sexual do homem, ou ainda, prostituta. O caminho que esse termo percorreu de um significado ao outro é um exemplo de como a dominação masculina define as mulheres igualmente em termos da presença de uma heterossexualidade ilícita ou da ausência da heterossexualidade aprovada. Todas elas são tidas como prostitutas.

É daí, inclusive, que vem o hábito de agrupar lésbicas e prostitutas em uma mesma categoria, e de transformar em “atos sexuais” sujos as afeições trocadas entre mulheres. O que algumas ditas autoridades em sexualidade afirmam — Havelock Ellis, Frank Caprio e Harold Greenwald —, em resumo, é que a prostituição, tida como o mais promíscuo dos atos heterossexuais, é uma pseudoheterossexualidade e uma fuga do lesbianismo!

A autora termina esse capítulo falando da invasão masculina aos espaços sagrados das sacerdotisas virgens, transformadas em prostitutas rituais. O mesmo processo que transformou a lésbica e a companheira em prostitutas foi o mesmo que transformou e heterosexualizou as sacerdotisas em prostitutas. O capítulo seguinte vai analisar a versão cristianizada da virgem sagrada e “mulher livre/fácil”: a freira.

These woman were required to be virgins, their virginity being sacrificed as a ritual offering. If we see virginity in a more woman-defined sense of female integrity — as a woman who is unto her Self, independent from men — we can also understand how men would perceive such integrity as necessary to contain and control. Thus the sacred virgin becomes the sacred prostitute who later becomes the secular prostitute.

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