Fichamento: A Passion for Friends #3

Variedades de amizade feminina: a freira como mulher fácil/livre

RAYMOND, Janice. A Passion for Friends: toward a philosophy of female affection. Melbourne: Spinifex Press, 2001.


Nesse capítulo Janice Raymond usa o exemplo das freiras e da vida comunitária no convento para exemplificar a riqueza da vida entre companhias femininas e os ataques dos homens à sua independência. A autora usa, inclusive, a sua própria experiência pessoal como freira para tratar esse exemplo.

Ela inicia falando dos ataques da Reforma Protestante às ordens monásticas e, principalmente, às ordens de mulheres. A própria existência de mulheres vivendo separadas de homens e trabalhando em atividades intelectuais na época negadas às mulheres já as caracterizavam como “perdidas” pelos seus críticos, tanto católicos quanto protestantes. Mas foi a crítica protestante que transformou a virgem na prostituta, uma vez que, na sua visão, qualquer mulher independente de marido era imoral.

Com o advento do cristianismo, muitas mulheres perderam o seu prestígio social, intelectual e político, de modo que o convento se tornou um refúgio para muitas delas. Essas mulheres buscavam independência e oportunidades que eram negadas para a maior parte das pessoas da época.

The nun carried on the tradition of the loose woman, that is, the independent woman associated with a pagan and ungodly period. Therefore, female autonomy and detachment from men were regarded as pagan and ungodly. The male hierarchy was always in conflict with the independent spirit which had draw many women to convent living initially.

Para frear essa liberdade inconveniente, obviamente a igreja católica tentou circunscrever a atuação dessas mulheres dentro de suas próprias regras. Como exemplo das tentativas da igreja de cercear ordens de mulheres, autora vai falar do movimento Beguine, um movimento religioso cristão independente das hierarquias católicas que buscava inclusive a discussão e o conhecimento teológico, de modo que não ficasse restrito aos clérigos. Ainda que a perseguição tenha sido pesada e que bispos tenham acusado o movimento de agregar mulheres fugindo dos laços maritais, a ordem só foi completamente dissolvida no século XV.

Raymond então vai investigar as origens das associações da definição do termo “freira” com o significado “cortesã”. Ela então cita alguns casos em que mulheres foram levadas a vida em convento como forma de corrigir seu comportamento. Sem querer, segundo autora, a igreja católica teria dado as condições para o surgimento de uma hetairocracia — lembrando aqui que o termo vem de hetaira, que significa “prostituta” ou “companheira”, conforme discutido no capítulo anterior. A autora vai chamar o hetairismo de “Regra da companheiras” (The Rule of companions), uma noção espiritual de amizade que expande os limites da afetividade, atuando diretamente na vida das mulheres.

The convent is also a primary locus for long-term institutionalization of female friendship under the aegis of sisterhood, a situation in which women spent their lives primarily with other women, gave to womrn the largest of their energy and attention, and formed powerful affective ties to each other — so powerful that this Gyn/affection became effective in the world outside the convent.

Desde que se estabeleceram os primeiros conventos, os clérigos homens tentaram definir os limites da vida dessas mulheres, acusadas de tentar “usurpar as prerrogativas dos homens”. Essas mulheres, no entanto, estavam buscando retomar as prerrogativas das mulheres que vieram antes delas. Ainda que os estudiosos do assunto tenham classificado essas mulheres como “privadas de homens” por causa de desenvolvimentos históricos da época como as cruzadas, e que esse teria sido um dos motivos para a busca por uma vida monástica, esse retrato do assunto falha ao se deparar com o fato de que esses conventos eram poucos em número e que não supriam a demanda das mulheres que buscavam por essas ordens. Algumas ordens, como as próprias Beguine, talvez tenham surgido justamente porque essas mulheres não conseguiam vagas nos conventos que existiam, e porque os homens relutavam em abrir novos conventos para mulheres.

Além da fuga de uma vida marital ingrata, a autora destaca que a vida no convento oferecia às mulheres uma vida de educação intelectual que nem mesmo as mulheres nobres nem o homem médio tinham acesso. Nessas instituições, mulheres mais velhas podiam ensinar mulheres mais novas na companhia de suas iguais, criando uma tradição própria. Assim, essas mulheres eram atraídas para vida no convento por seus próprios motivos, e não por uma diferença numérica entre a população de homens e mulheres e pela consequente impossibilidade de se casarem.

Nos primeiros conventos, a maior parte das mulheres eram de classes mais altas. Com o tempo, mulheres de classe baixas também foram atraídas para a vida monástica. Nesses lugares elas podiam estudar artes, literatura, produzir livros e manuscritos. Nessa época esses conventos não eram isolados ou um lugar reservado à meditação. Porém, essas atividades mais tarde foram restritas aos monastérios de homens ou transferidas para artesãos laicos, fora da comunidade monástica.

“[…] It was a busy and active unit of society with its own economy and definitely an outward thrust of service to the community”. It was a context in which women could do great things. It was a community of spiritual friends.

Adiante no texto, a autora vai tratar das variantes de amizade, iniciando pelo que ela chama de “amizade espiritual”. Aqui ela vai começar tratando de como a própria tradição cristã (principalmente através de autores homens) enxerga a amizade. A atitude geral desses autores em relação a amizade é que trata-se de uma virtude cristã, mas que não se deve se apegar a nada nem a ninguém, uma vez que deus deve ser o centro do apego do cristão. Mas ela vai destacar um autor em particular — Aelred de Rievaulx —, que escreveu um tratado chamado, justamente, Amizade Espiritual. Nesse texto, o autor vai tratar da amizade como uma expressão do próprio amor de deus. Esse autor, no entanto, vai exortar as pessoas a manter a pureza de suas intenções e discrição na intimidade, evitando que as amizades se tornem “carnais”.

Já as “amizades particulares”, das quais Raymond trata a seguir, não eram bem vistas pelas comunidades. Havia na época exortações contundentes para que as irmãs não se apegassem muito umas às outras. Essas acusações contra as amizades particulares caíam em duas categorias. A primeira era a ofensa contra as virtudes da caridade, uma vez que se acreditava que a amizade particular era baseada em motivos puramente naturais, sentimentais ou até sensuais. A segunda forma de acusação contra esse tipo de amizade é que elas violavam o voto de castidade, que no contexto dessas comunidades também inclui evitar intimidade com pessoas do mesmo sexo. As noviças eram admoestados contra a possibilidade (latente ou não) da homossexualidade. A preocupação com homossexualidade fez com que alguns conselheiros da época achassem mais perigoso que os monges caíssem em tentação por outros monges do que por uma mulher.

Janice Raymond fala de sua própria experiência ao ser censurada em uma amizade particular:

My own experience of being censured for forming a particular friendship was an outgrowth of a walk in the woods with another novice during the course of a rare “free day”, that is, a day on which convent duties and obligations were reduced to allow free time for prayer, study and walks out of doors. We had interrupted our walk to sit down on a large boulder, at which point we admired the trees coming into spring life, spoke about our common passion for writing and its relationship to spiritual life, and briefly — in the ecstasy of being at one with God, the cosmos, and each other — held hands! One of our peers, who evidently saw us engaged in this rather innocuous act of “pressing the flesh”, felt it her spiritual duty to report us. That evening, in the refectory, we were both publicly chastised and berated for endangering these rare days of freedom for the rest of our sisters because we had passed the boundaries of permissibility. In private, after the public exposure, my companion was browbeaten by the novice mistress into “confessing” her “illicit affection” for me. The novice mistress attempted to elicit a similar confession from me, but I was not to be intimidated by her representation of our holding hands as simulation of intercourse! For this willfulness I was told that “pride goeth before the fall”. My friend, who was traumatized by the censoring and the innuendos of abnormality, inwardly confused about her own feelings, and certainly not helped by my own disdainful judgment that she had allowed herself to be overwhelmed by the novice mistress, left the community a year later.

A Reforma Protestante e sua Contra-Reforma católica ajudaram a suprimir as ordens religiosas de mulheres. A dissolução dos mosteiros que se seguiu pressionou várias ex-freiras a se casarem e se encaixarem nos “novos” valores religiosos. Uma vez que a “purificação” geralmente se dá através da remoção do poder das mãos das mulheres, os homens da igreja católica se viam fazendo o trabalho de deus ao remover as mulheres das posições de autoridade ou submetendo seu poder a uma esfera mais alta. Uma das medidas para que isso acontecesse foi a exigência do enclausuramento, impedindo que essas mulheres tivessem atividades no mundo exterior e exigindo que usassem uma vestimenta própria que restringia seus movimentos.

The wearing of a distinctive habit of clothing was imposed on nuns, greatly restricting their physical mobility. The habit usually enshrouded their bodies and became a kind of clothing cloyster that encumbered all sorts of physical activities. Men were not required to wear the awkward uncomfortable headgear that enclosed minds for centuries. This headpiece was rationalized as fulfilling Paul’s injunction that women should keep their heads covered, especially in church, so as not to distract or seduce (presumably men).

Cada vez mais essa restrição às mulheres foi crescendo nas ordens, de forma prática e simbólica. Nos conventos onde coexistiam no mesmo local homens e mulheres, passou-se a exigir que as mulheres preparassem as roupas e as refeições dos homens. Principalmente durante os séculos XIV e XV, os conventos perderam a sua função intelectual e suas atividades se voltaram à domesticidade.

The rule of enclosure cloistered more than the physical space and mobility of religious women. It also circumscribed their minds.

Foi crescente nessa época também o aumento das invasões literais nessas comunidades de mulheres. Assim, essas mulheres eram alvos de ataques violentos e não podiam contar com qualquer proteção das autoridades religiosas de um lado, e de outro, as próprias autoridades religiosas as forçavam a se submeter às suas reformas e contra-reformas. Muitas comunidades de mulheres acabaram aceitando o isolamento proposto pelas autoridades católicas na tentativa de se protegerem dessas invasões.

Os reformistas protestantes, por sua vez, retratavam as mulheres nessas ordens religiosas como degeneradas e corrompidas, e os conventos como locais de promiscuidade e imoralidade, onde mulheres tinham relações heterossexuais, engravidavam, pariam, matavam e enterravam seus bebês sem serem notadas — como atestam algumas das instruções para inspeções nesses lugares. Para eles, a virtude da mulher só era possível enquanto esposa e mãe, sendo o casamento a escada que leva ao alcance de deus. Dessa forma, eles igualavam o voto de castidade à prostituição e os conventos aos bordéis. Acusavam os monastérios injustamente e obrigavam que se dissolvessem, de modo que as mulheres que não se conformassem com uma vida comum no casamento sofriam pressões de todos os lados.

What happened to the nuns who were “freed”? Those who took dispensations were given a small sum of money to tide them over until they presumably “settled down” and got married. Many women were simply “set free” to drift and fend for themselves. These women had led secluded lives and were discharged into a world where they would never really belong. Henceforth, they were obviously endangered. And, once again, the Church — this time Protestant — created the very class of loose women against which it inveighed.

Janice Reymond conclui esse capítulo ressaltando que, apesar da aura opressora dos conventos, eles proviam a essas mulheres uma comunidade sólida e estável, onde elas podiam trabalhar, escrever, ensinar ou se envolver na comunidade, florescendo de formas poucas vezes possível na história das mulheres. Muitas coisas triviais eram providas por essas instituições, ainda que essa ordem fosse enfatizada em detrimento da independência das mulheres. Ela acrescenta que, no feminismo, essa estrutura não existe:

Many early feminist institutions, women’s centers, and business were short-lived because there were no guiding principles of organization. Disagreements often escalated into divisiveness that undid many attempts to create feminist institutions.

A autora destaca que uma lição crucial a ser apreendida na história das mulheres em geral e dessas mulheres religiosas em particular é que a ordem de uma comunidade de mulheres deve ser gerada e estabelecida internamente, de acordo com os propósitos dessas mulheres, e não pode ser imposta de fora por autoridades masculinas. Uma vez que essa ordem foge disso, ela cria uma tensão entre individualidade e comunidade que suprime a privacidade dos indivíduos, transformando a comunidade numa entidade que busca moldar opiniões e regular a vida das suas membros.

Então, a autora fala a respeito de afeto “desordenado” e “não centralizado”, que acaba por transformar as mulheres em relacionadoras profissionais, o tempo todo imersas em relações e relacionamentos como o foco de suas vidas, sem no entanto a construção de uma intimidade verdadeira com alguém, sejam homens ou mulheres.

Raymond defende que o tipo de intimidade que se desenvolve em uma “amizade particular” não é algo pronto e que pode ser encontrado em qualquer lugar. Esse tipo de intimidade precisa ser desenvolvido com carinho, respeito, ternura, e não surge de uma hora para outra, e que essas amizades íntimas são “posses altamente frágeis” que necessitam estar aliadas a outras formas de vida (emocional, intelectual, social e espiritual) para sobreviver.

Ela encerra esse capítulo com este belo parágrafo:

In the final analysis, the power of female friendship in convents derive from the fact that friendship is by nature a spiritual communion, but women are not and never will be pure spirits. With nuns, as with all women, friendship is mediated through and only becomes Gyn/affective on the material world.

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