Agora que o perigo parece ter passado, posso contar essa história para vocês. É sobre a internet.
A internet antigamente era de acesso bem restrito. Antes dos civis poderem usar, e por um preço muito proibitivo para a maioria das pessoas, só o exército e as universidades tinham acesso. A maioria das pessoas acessava só após a meia-noite e em fins de semana, porque o acesso era via telefone e o pulso era único. A conta ficava mais barata assim, e tudo era muito, muito limitado. Com a tecnologia atual, a gente assiste filme pela internet, uma coisa literalmente impossível de se fazer com internet discada. A Fabiane de 2000 teria ficado maravilhada com coisas como Netflix e Spotify; a Fabiane de hoje fica muito brava quando o Netflix engasga, esquecendo completamente do estado das coisas quando as conheceu. A internet era uma merda, mas era fascinante.
Uma coisa que não havia na internet era indexação. Isso deixava toda a rede às escuras, como é hoje a Deepweb. Você só conseguia acessar um site se tivesse posse de uma informação fundamental: seu endereço*. Por causa dessa deficiência, começou-se a publicar índices impressos em papel. Assim, você teria visitas em seu site se tivesse acesso a essa parte do mundo material. Os agregadores de links eram o mais próximo que se tinha de indexação na internet, funcionavam basicamente como esses livros e também tinham seus endereços catalogados em mídia impressa se fossem populares o suficiente. Boa parte das empresas que faliram no estouro da Bolha no fim dos anos 1990 eram agregadores, sites que dividiam links em categorias e traziam uma breve descrição sobre eles. A empresa daquele cara que dá palestra sobre desapego gerenciava um site assim, o Sobre Sites. Eu gostava do Sobre Sites.
Os blogs são descendentes diretos desses agregadores. O formato original do blog é o de agregador de links; a diferença que o blog estabeleceu entre si e o agregador de links era a de que suas entradas eram registradas de forma organizada (e automatizada) por data. Antes disso, os webmasters apenas anotavam manualmente a data da última atualização do site no rodapé. Agora era possível navegar pelo arquivo e revirar a história de uma página específica de forma ordenada. Essa característica cronológica aproximava esse formato internético do log. Log, na computação, geralmente é um arquivo em texto puro que registra o que está havendo no sistema em um determinado momento, anotando data e fato. Um diário de bordo automático. A diferença do log para o blog é que o blog não é feito por um robô, mas por uma ou mais pessoas.
Importante notar que o blog não é nem um agregador, nem um log, apesar de todas as suas semelhanças. É uma coisa totalmente diferente desses dois, porque é filha sua: um amálgama**.
O conteúdo dessas e de outras mídias passou a ser cada vez maior nominalmente, mas havia muita cópia, muita informação redundante. Quem se destacava não necessariamente era quem tinha o melhor conteúdo, mas quem melhor conseguia chama a atenção dentro e fora da rede. Alguns kibadores*** realmente fizeram e fazem sucesso com conteúdos que não são seus. E muita gente também atingia notoriedade anonimamente, ghost writers não oficiais de escritores como Arnaldo Jabor, Luís Fernando Veríssimo e Clarice Lispector. Não se sabe de quem são os textos atribuídos a estes escritores ou por que motivo foram atribuídos erroneamente. Duas maneiras de fazer sucesso, de qualquer modo.
Uma vez que esse conteúdo acumulado vai ficando exponencialmente maior, mais irrelevante e caindo cada vez mais no olvido, há muito lixo. Muito, muito lixo! Muita coisa já saiu do ar ou foi substituída, muita coisa ainda pode ser redescoberta. Muito conteúdo que já se julgava completamente perdido e esquecido pode voltar à tona, como aquele beirute suspeito que você jantou ontem e jurava que já tinha digerido.
Contei pra vocês a história da internet para dizer apenas uma coisa: nunca me senti tão feliz de ter apagado — acredito que dessa vez em definitivo — conteúdo que eu mesma criei e compartilhei de livre e espontânea vontade anos atrás, e jurava que já não existia mais.
*Isso dá abertura para uma série de teorizações semióticas, mas acredito que não tenho competência suficiente para falar disso agora, e nem quero.
**Por todas as suas características, o blog ficou conhecido na cultura popular — isto é, off line — pelo nome de “diário virtual”. Muita gente tentou se desvencilhar dessa associação, mas a rigor é exatamente isso que um blog é. Não importa o que você registra lá, o que importa é que o faça de maneira cronológica, e seja uma pessoa escrevendo.
***Kibe, um dos mais populares neologismos da internet do Brasil. Significa copiar sem autorização, e faz referência ao publicitário Antonio Tabet (Kibeloco), hoje parte do elenco do grupo Porta dos Fundos.
Não tinha parado pra pensar nisso, mas realmente hoje a gente reclama de alguma lentidão sendo que na época levava horas pra baixar apenas uma música com qualidade porca.
Bacana a volta que você deu também, me fez lembrar muito do início dos blogs, de como no começo as pessoas escreviam porque gostavam e não para ganhar dinheiro e tudo mais.
Não sei o que você apagou, mas que bom que encontrou 😀
Foi algo bem vergonhoso, amg.
O pedantismo me faz apontar que você fala da web e não da internet.
Meu espanhol é hediondo, mas quando li “caindo no olvido” me veio a mente o Lethe. Palavras, sempre fantásticas.
Encerrar o corpo do texto com um parágrafo assim é uma trope que nunca fica velha.
E qual a trope para “final infeliz numa nota de rodapé”?.
Aliás, me interessa sua opinião sobre a questão da socialização (e curralização) da web. Como foi sua experiência? Somente sugerindo assuntos para novos posts.
Verdade. Sei lá, nem parei pra pensar na diferença entre “www” e “internet”, confesso.
E eu adoro a expressão “caindo no olvido”, uso sempre que posso.
Parei pra pensar aqui e até que não errei muito: estou falando de alguns aspectos/conteúdos contidos internet, logo…