Em tempos de campanhas deliberadas em prol da desinformação, tem me dado cada vez mais vontade criar, escrever e produzir. Sinto em outras pessoas a mesma necessidade e vontade reprimida. A tirada da poeira deste blog surgiu dessa ânsia.
Precisamos estudar e nos armar para a guerra suja da informação que se faz contra a teoria e o conhecimento produzido por mulheres. Mergulhar nessa teoria, sintetizar seus desenvolvimentos e facilitar a sua passagem adiante é uma das formas de se produzir, difundir e perpetuar esse conhecimento. Acredito que não existe livro melhor para continuar a série de fichamentos em que este blog se meteu que esse. Boa leitura!
Introdução
RAYMOND, Janice. A Passion for Friends: toward a philosophy of female affection. Melbourne: Spinifex Press, 2001.
A Passion for Friends, de Janice Raymond, começa com um curto prefácio e uma longa introdução onde a autora vai descrever a obra e apresentar suas premissas. No prefácio, ela narra o silêncio dos escritos feministas sobre amizades entre mulheres quando começou a escrevê-lo em 1980. E que apesar de “o pessoal ser político”, o pessoal era muitas vezes deixado de lado quando se tratava de relações e políticas entre mulheres. Ela aponta também que, naquela época
One of the divisions was between radical feminists and socialist feminists. By and large, it was socialist feminists who got to define the divisions, since it was they who ended up in institutionalized and secure positions in universities.
Assim, ela conta, as feministas socialistas — que mais tarde se tornaram pós-modernas — se importavam mais em catalogar os “tipos de feminismo” do que com um verdadeiro debate de ideias. Nessa tipologização, o feminismo radical é classificado como “essencialista”, “ontológico” e teoricamente fraco. Isso porque ele não se apoia em paradigmas anteriores e tradições filosóficas masculinas que os autorizem como tradição teórica. O feminismo radical (e aqui ela cita Catharine MacKinnon) é um “feminismo não-modificado”, “não qualificado por modificadores pré-existentes”. Da mesma forma, ela pretende no livro tratar da amizade “não-modificada” entre mulheres, independente dos homens, onde as mulheres se colocam no centro de suas relações.
Na introdução, Raymond começa tratando da percepção geral de que as mulheres, ainda que na companhia de si mesmas mas sem a tutela de um homem, são vistas como estando sozinhas. E mesmo quando passam suas vidas inteiras sem essa tutela, são vistas como menos felizes sem a presença masculina.
“[…] even when women are engaged in the richest of pursuits, they are impoverished if men are not involved. This sentence would never be written about men’s groups that historically were engaged in political intellectual and social activities in which no women were involved.
“The perception here is that women together with their work follow no “trail” or “logic” of their own. No matter how brilliant or creative a woman’s work is, it can “only be accessed in relation to” brilliant men. Or, quite simply, from the point of view of hetero-relational vision, women’s work, like woman herself, is perceived as derivative.
Raymond continua dizendo que as mulheres sempre foram amigas, mas que as evidências dessa tradição de amizade foram “desmembradas” (termo da Mary Daly). Isso acontece na tentativa de desmembrar a identificação das mulheres entre si mesmas (seu Self), para torná-las incapazes de identificar as forças dentro de si e nas mulheres ao seu redor.
A central premise of my book is that burried deep in the past, present and future of female existence is an original and primary attraction of women for women. It is manifested by many different women in many different ways. Women who have manifested and do manifest this affection for woman initially care about their Selves and thus cherish the friendship of others like their Selves.
Ela argumenta que é através da amizade entre mulheres que as mulheres podem se reinventar dentro de um mundo em que os padrões de como uma mulher deve ser foram todos criados por homens. Nessa parte ela cita uma outra frase da Simone de Beauvoir que adoram tirar do contexto: “se as mulheres não existissem os homens as teriam inventado”. A frase continua dizendo que as mulheres existem longe/fora da inventividade dos homens.
Ela reconhece que nem todas as mulheres conseguem ter ou manter amizades, e que se trata de uma dificuldade comum e reconhecida dentro do movimento feminista. Foi um dos motivos para ela ter escrito o livro, inclusive, e para se livrar do luto dessas amizades perdidas.
Raymond então conceitua gyn/affection (gino-afeição?) e hetero-relações. Gyn/affection seria a atração, influência e movimento entre mulheres, enquanto que as hetero-relações seriam uma série de relações econômicas, políticas, sociais e afetivas entre homens e mulheres que acabam criando o que ela chama de “hétero-realidade”.
“Women who affect women stimulate response and action; bring about a change in like; stir and arouse emotions, ideas and activities that defy dichotomies between the personal and political aspects of affection. Thus Gyn/affection means personal and political movement of women toward each other. As “the personal is political,” so too “the political is personal”.
“While it is true that certain kinds of political activity are and have to be possible between persons who are not friends, both politics and friendship are restored to a deep meaning when they are brought together — that is, when political activity proceedes from a shared affection, vision, and spirit and when friendship has more expansive political effect.
“[…] friendship is a social trust. It is an understanding that is continually renewed, revitalized, and entered into not only by two or more political beings who claim social and political status for their Selves and others like their Selves.
O longo trecho a seguir está traduzido para o português porque o publiquei em minha página pessoal do Facebook.
“A mulher feita pelo homem tem como prioridade as relações hétero. A literatura, a história, a filosofia e a ciência do patriarcado têm reforçado essa relação supostamente mística e primordial da mulher pelo homem. Como expresso no Gênesis, e daí por diante perpetuado pelo patriarcado, o imperativo hétero-relacional é unilateral. “O seu desejo será para o seu marido, e ele dominará sobre ti” (Gênesis 3:16-17).
Importante entender que as normas da hétero-realidade têm em mente a mulher pelo homem, e não o homem pela mulher. As mulheres têm se dedicado aos homens de modos bastante diferentes daqueles em que homens existem pelas mulheres. O dito bíblico torna essa diferença bem clara. Ele afirma simplesmente que, dentro da hétero-realidade, mulheres existem para os homens ontologicamente; ou seja, ela é formada por/para ele e não pode existir sem ele. O destino e desejo dela fabricados pelo homem são consumidos pelo apetite voraz dele. A essência e a existência dela dependem sempre de estar em relação a ele. Como posto por Nancy Arnold, as mulheres se tornam o “essencial não-essencial”.
No entanto, o homem está acidentalmente ligado à mulher; isto é, o desejo e o destino de um homem, quando incluem mulheres, não estão circunscritos por relações com mulheres. Em vez disso, seu destino é o de construtor de mundos na companhia de seus amigos homens. Seu imperativo é criar o mundo e sua cultura, ciência e tecnologia “com o suor de seu rosto”. E o homem faz isso primeiramente em conjunto com outros homens.
O destino do homem é, portanto, ultimamente homo-relacional. A normativa e o real poder das homo-relações masculinas é disfarçado pelo fato de que esse rapport homem-a-homem é institucionalizado em cada aspecto de uma aparente cultura hétero-relacional. São as mulheres que carregam o fardo de viverem no imperativo hétero-relacional. Na verdade, esta é uma sociedade homo-relacional construída em relações, transações e laços entre homens em todos os níveis. As relações hétero servem para prover aos homens sustento e suporte das mulheres que eles não conseguem de outros homens. A hétero-realidade é o disfarce da homo-realidade.”
Raymond argumenta que não é só uma questão de heterossexualidade, mas de toda uma hétero-realidade construída e institucionalizada que acaba formatando as relações entre homens e mulheres e, consequentemente, entre mulheres e mulheres. É por causa dessa hétero-realidade e da dinâmica dessas hétero-relações, por exemplo, que uma atividade que antes era inteiramente feminina — parteiras e tudo o que envolve dar à luz — acabou sendo invadida pelos homens, uma vez que eles devem ter direito ao acesso às mulheres em qualquer circunstância no patriarcado.
A autora diz que essas hetero-relações afetam até mesmo o feminismo. A noção de que o feminismo deve buscar igualdade aos homens — em vez de autonomia, independência, amor e cooperação entre mulheres — acaba colocando uma premissa equivocada ao feminismo, definindo as mulheres em relação aos homens e não em relação a outras mulheres. Uma das críticas que ela faz aqui ao feminismo liberal e ao marxista é que ambas estas formas do fazer feminista investigam e localizam as mulheres principalmente em relação a homens, sua história e cultura.
Depois, a autora define seu conceito de “gyn/affection” em relação ao Lesbianismo, mostrando pontos de contato e diferenciações entre ambos os conceitos. Ela retoma as conceituações mais amplas de Lesbianismo, como a apresentada por Adrienne Rich, que o define como um amor entre mulheres livre, independente e florescendo dentro de redes de apoio mútuo. Raymond vai buscar se distanciar um pouco dessa definição por motivos filosóficos. Ela esclarece que ser lésbica está muito além do contato genital entre mulheres, mas que o Lesbianismo (com L maiúsculo, ela frisa) precisa necessariamente incluir a dinâmica sexual, erótica e afetiva. “Gyn/affection”, por outro lado, pode até incluir o Lesbianismo, mas se situa para além da vivência especificamente lesbiana.
Depois da apresentação desses conceitos, Raymond esclarece que tipo de trabalho é este livro. Trata-se de um trabalho de filosofia onde não apenas ela faz uma genealogia das amizades femininas, mas também busca fazer filosofia propriamente dita. Ela tenta se distanciar um pouco de outros trabalhos — como o da própria Simone de Beauvoir — que posicionam as mulheres como o Outro, porque essa alteridade criada pelos homens é destrutiva e, ainda que sirva para propósitos feministas, não vai além. Ela argumenta que o feminismo não deve se preocupar somente em tentar desvelar a opressão das mulheres, mas também pensar os nossos objetivos enquanto grupo e nas forças que nos mantém sobrevivendo e lutando. Construir o feminismo somente em cima dos efeitos horrendos do “Estado de Atrocidade” não permite que as mulheres se identifiquem entre si pelos seus aspectos positivos, mas somente pela dor e sofrimento compartilhado.
“Women must ask not only what we are fighting against but also what we are fighting for. The destruction of all systems of female opression and the development of female friendship go hand in hand.
Raymond fala do método filosófico que utiliza no desenvolvimento do livro, que é a genealogia. Há, inclusive, uma nota de rodapé onde ela reconhece a importância de Foucault no desenvolvimento desse método. Mas ela dá uma cutucada nele: sua filosofia é toda enraizada em “uma visão de mundo pornográfica” e o desprezo pelas mulheres é bastante óbvio em sua obra.
Ela diz que, apesar de os contextos onde as mulheres vivem e viveram através dos séculos poderem variar bastante, ela busca em sua genealogia as experiências comuns das mulheres de viverem em um mundo dominado por homens. Ainda que boa parte das evidências das resistências das mulheres dentro do mundo hétero-relacional tenha sido apagada, é nas proibições e nas restrições que se colocam às mulheres que se pode descobrir essa resistência.
A autora encerra esse capítulo introdutório retornando novamente ao slogan de Carol Hanisch, “o pessoal é político”. Ela critica a forma como feministas têm falado sobre ideais e realidades possíveis de comunidade e irmandade, sem no entanto entrar na questão da amizade entre mulheres — ainda que muitas tradições feministas tenham levantado a necessidade de se construir uma solidariedade entre mulheres. Ela retoma a expressão “Estado de Atrocidade” para apontar que o feminismo deve significar algo além da luta das mulheres em conflito com homens e a supremacia masculina, mas também incluir que se trata de mulheres em acordo entre si e entre si mesmas.
“It is not enough for feminist to dissect the corpse of patriarchal pathologies. It is not enough for women to depict the state of hetero-reality. Women have not always been for men. We need to know the genealogy of women who did not and who do not exist for men or in pivotal relation to them. And we need to create a vision of Gyn/affection. What women search for can be as important as what we find.”
Obrigada Deusa da leitura, estava chorando pq só achei esse livro em inglês e não manjo nada KKK obrigada por continuar nessa missão de compartilhar conhecimento em tempos tão sombios