Antes de começar, é importante em um primeiro momento pensar que o contexto onde se costuma usar essa expressão no Brasil é um tanto diferente do contexto de outros países. Em lugares como o Reino Unido e a Espanha — em que os conflitos entre militantes “lgbtqia+” e mulheres chegaram ao ponto do embate físico — esse debate está muito mais avançado ou, pelo menos, polarizado a ponto de ter se tornado um tema de discussão de nível nacional. Certos absurdos promovidos por transativistas já não são mais possíveis de serem escondidos, tendo se tornado escândalos de grandes proporções — como é o caso da clínica Tavistock do NHS e as inflamadas discussões sobre a chamada “Ley Trans” espanhola. Existe nesses lugares uma consciência um tanto mais desenvolvida de que a ideia de “identidade de gênero”, quando incorporada a leis e regulações, destrói os direitos das mulheres porque eles são fundamentados na diferença sexual.
No Brasil, por outro lado, quem utiliza a expressão “ideologia de gênero” em geral são pessoas de direita, mas nem sempre. Muitas mulheres interessadas na defesa dos direitos de base sexual de sua classe, feministas ou não, e informadas pelas discussões que já ocorrem nesses outros países, às vezes também fazem uso do termo. O problema é que, uma vez que esse termo é colocado em alguma discussão no contexto brasileiro — e aqui essa discussão ainda ocorre pelas beiradas, restritas a grupos fechados e caixas privadas de mensagens —, ele acaba chamando toda a atenção para si mesmo e o debate acaba interditado. Não que exista qualquer boa vontade dos defensores da noção de “identidade de gênero” de realizar um debate justo e baseado na realidade das mulheres, mas aparentemente se referir às políticas promovidas por transativistas e à noção de “identidade de gênero” como “ideologia de gênero” parece ser um pecado mortal e imperdoável, mesmo quando o assunto é a defesa dos direitos humanos das mulheres.
Quando a direita utiliza esse termo, raramente ela está preparada para responder seus críticos e argumentar de acordo. Basta ver os assuntos que essas pessoas costumam elencar em conjunto com o que chamam de “ideologia de gênero”: seu objetivo não é fazer uma defesa dos direitos das mulheres de base sexual, mas uma crítica generalizada e mal ajambrada a um amálgama de coisas, que vão desde instituições que atuam em frentes culturais (como as universidades e a mídia) até os direitos reprodutivos das mulheres e a questão da hormonização de crianças no chamado “processo transexualizador”.
E a esquerda, quando responde a isso, em geral adota duas estratégias. Uma delas é dizer que esta é “uma pauta importada”, fazendo referência justamente aos debates já em estado avançado que ocorrem em outros países, como se mulheres daqui e desses outros países não tivessem interesses comuns. Outra estratégia é afirmar que “‘ideologia de gênero’ não existe”; o que os conservadores chamariam de “ideologia de gênero” seriam os chamados Estudos de Gênero, um campo das Ciências Sociais. O problema é que esses dois movimentos argumentativos da esquerda são na verdade uma forma de fugir da discussão sobre os choques de interesses entre o movimento “lgbtqia+” e os movimentos de mulheres. Além disso, se busca exigir do interlocutor a aceitação incondicional das pautas dos transativistas em um pacote fechado com os direitos das mulheres, sem direito a questionamentos.
Fica claro então que existem duas instâncias nessa discussão que disputam o significado dessa expressão: a esquerda e a direita. Enquanto isso, as mulheres, ainda em processo de estabelecer uma linguagem própria para falar do assunto e por vezes não informadas a respeito de desenvolvimentos de décadas anteriores dessa discussão, não possuem uma língua comum e acabam adotando termos já fortemente carregados de significados, alguns deles inconvenientes à sua própria luta. Um desses termos inconvenientes é justamente o “gênero”, sozinho: se antes, na teoria feminista, esse termo buscava significar a diferença social que prioriza os homens em detrimento das mulheres estabelecida sobre a diferença sexual, hoje ele se refere a performatividades identitárias manifestadas em roupas e trejeitos. Esses termos mais atravancam a discussão do que a esclarecem.
Parte dessa impossibilidade de diálogo diz respeito a como o movimento “lgbtqia+” alcançou notoriedade e relevância, e se perdeu em seus propósitos depois da conquista do casamento civil. Assim que esse movimento conseguiu assegurar para si direitos matrimoniais — depois de ter ignorado completamente discussões anteriores sobre como o casamento em si é uma instituição que serve para manter o poder masculino sobre as mulheres, sem que se deixasse espaço para discutir outros tipos de contrato que não presumem obrigatoriamente o contato genital —, sua agenda já não era mais tão clara. Como em outros momentos de sua história, esse movimento acabou infiltrado (mais uma vez) por pessoas com interesses escusos e até mesmo homofóbicos. Isso se deu (novamente) porque, como na segunda metade dos anos 1970, a crítica feminista da sexualidade perdeu força e foi jogada para debaixo do ônibus sob a pecha do “moralismo”. Eventualmente, os transativistas lograram sucesso e o movimento que antes se colocava em defesa dos direitos civis dos homossexuais passou a priorizar a pauta “trans”, indo totalmente na contramão do que significa a própria noção de homossexualidade. Reconhecendo homens como mulheres iguais a qualquer outra mulher em função de suas autoafirmações — ou talvez como ainda mais mulheres do que as mulheres, como se fosse uma característica mensurável quantitativamente —, os transativistas também se infiltraram nos movimentos e nos grupos de estudos de mulheres. No fim das contas, o debate é sim ideologizado: ele move forças semânticas, sociais e econômicas de modo direto, com objetivos claramente políticos.
O fato de mais mulheres terem chegado na academia não protegeu o seu campo específico de estudos da extinção: todos os programas antigamente conhecidos como “estudos das mulheres” acabaram eventualmente se convertendo em “estudos de gênero”. Uma vez que as mulheres se disponham a estudar sua condição dentro dessa tradição teórica específica, fica difícil teorizar sobre certas coisas relativas ao seu estado de oprimidas e exploradas em função de suas possibilidades reprodutivas sem desmembrar as mulheres de seus corpos, sem uma cisão cartesiana entre corpo e mente. “Gênero”, afinal, foi justamente uma tentativa de desvincular a opressão das mulheres de seus corpos, tentando desculpá-las de uma opressão que não é causada por elas; no entanto, “gênero” também desculpa os culpados, evitando nomeá-los e evitando também apontar as suas ações.
Esse desmembramento não acontece por acaso: desde que se estabeleceu a dominação masculina, algumas mulheres buscam se desvincular de sua condição de mulheres na tentativa de alcançar o status humano. É por isso que os transativistas usam essas estratégias retóricas de validação por partes. Por exemplo, quando eles dizem que “Lino é mulher porque colocou próteses de silicone” ou perguntam aos questionadores se “Fulana deixa de ser mulher quando remove o útero?”, o que eles estão fazendo é um jogo em que não é possível para as mulheres ganhar. Eles desumanizam as mulheres, nos fatiando em partes e impedindo o reconhecimento das nossas partes como constituidoras do nosso todo humano. É de fato uma estratégia de desumanização disfarçada de inclusão: se é impossível definir mulheres sem incluir homens nessa definição, é porque a humanidade reconhecível nas mulheres está de alguma forma subsumida a eles. Como na noção de “honra”, que estabelece a dignidade das mulheres por seus vínculos masculinos, a noção de “identidade de gênero” torna impossível às fêmeas da espécie humana se reconhecerem enquanto humanas de forma independente dos machos.
Qualquer tipo de ideia politicamente carregada que mexa com as crenças e valores mais profundos das pessoas — seus valores morais, mas também o seu senso de justiça e de poder contribuir para alcançá-la — pode ser definida como ideológica. Se isso é uma coisa boa ou ruim, vai depender de como se define o termo “ideologia”; por exemplo, o significado mais brando do termo o define como um conjunto de crenças pelas quais os sujeitos justificam as suas ações e os seus objetivos políticos. No entanto, ideologizadores — ou seja, operadores de linguagem, porque o veículo de qualquer ideologia é necessariamente a linguagem — não têm poder total de dominação e não podem manter seu público rendido o tempo todo, dado que é precisamente no campo do significado que essas disputas acontecem; emissores não têm o monopólio da construção do sentido porque essa construção também é co-autorada pelos receptores. Por isso, as suas estratégias de legitimação são várias mas, principalmente, no caso dos ideologizadores do “gênero”, elas se fazem em duas frentes: pela manutenção da crença da ideia de “identidade de gênero” através da legitimidade conferida pela medicina partindo de pressupostos preconceituosos e anticientíficos, e pela coação das vozes dissidentes através de ameaças e chantagens.
“Gênero”, conforme posto pelos transativistas, é uma crença na existência de essências masculinas ou femininas que regeriam comportamentos típicos independente do sexo, mas ao mesmo tempo atrelados a ele. Trata-se de um paradoxo, que na mente do crente não existe porque, em seu ímpeto de justiça, ele é capaz de aceitar duas crenças conflitantes ao mesmo tempo. É uma crença porque não se trata de uma posição científica: não adianta fazer ciência estatisticamente correta construída sobre pressupostos bambos. O diagnóstico de “incongruência de gênero” é baseado em pressupostos homofóbicos e misóginos altamente questionáveis, os mesmos que serviam para definir a homossexualidade como uma doença até os anos 1990. O seu uso “científico” é ideológico precisamente porque perpetua essas ideias, sem qualquer base na realidade; a própria produção científica não é neutra nem desvinculada do seu contexto social, mas é também enviesada em função das convicções dos seus produtores.
No discurso político brasileiro, a expressão “ideologia de gênero” já foi abraçada pela direita e virou um shibolete: quem faz uso dessa expressão é necessariamente vinculado à direita se o seu interlocutor for de esquerda. É um termo que, pelo menos no Brasil, já está perdido e sem qualquer chance de salvação a partir do momento em que é agregado a discursos e estéticas que flertam com o nazismo. Mas é importante lembrar que existem muitas formas de dizer as coisas, e é melhor que a gente não adote nenhum desses termos que já foram adotados ou mesmo criados por outros grupos: nem “ideologia de gênero”, nem “gênero” ou mesmo a ideia de “identidade de gênero” precisam ser salvas, ou usadas sem que se esteja empenhada em criticá-las. Esses termos só obscurecem o debate e evitam clareza na conversa. Aceitar esses termos legitima o apagamento das mulheres.
É possível dizer que tanto a esquerda quanto a direita acreditam em “identidade de gênero” e fazem uso dessa ideia de modo ideológico: a esquerda pretende expandir o seu escopo, a direita pretende mantê-lo como está. Poder conversar direito sobre esse assunto faz parte do processo de defascistização pelo qual o Brasil precisa passar, e parte da responsabilidade por isso é da esquerda. Fazer pouco caso das queixas das mulheres sob pretexto de que se tratam de “pautas morais” não contribui nem para os direitos específicos das mulheres, nem para a promoção dos direitos humanos em geral. Isso acontece porque muitas das nossas pautas estão sim vinculadas ao campo da moral: a forma como a esquerda tem tratado os direitos das mulheres — nos definindo enquanto essência e priorizando a exploração sexual de nossa casta sem preocupação real com nossa autonomia —, por outro lado, é que tem sido imoral. Enquanto a direita oferece algum nível de reformismo relativo às suas posições mais tradicionais ou “especializa” as suas fêmeas em determinadas frentes políticas, dando a elas senso de propósito (e, por consequência, as desviando de seus interesses comuns enquanto mulheres), a esquerda tem ameaçado o ganha-pão dos críticos enquanto os rotula de “fascistas”, “preconceituosos” ou ainda “de direita”. Muitas dessas pessoas são simples e trabalhadoras, fazendo nada mais que sua obrigação de atender aos apelos das mulheres que ousam reclamar da invasão de homens em seus espaços separados por sexo.
Excelente texto!
Não podemos deixar que nossos direitos baseados no sexo sejam extintos!
Texto muito bom.
Muito bom!!!