Da elite para as massas: ascensão e queda da valorização do ensino superior público

Movimentos sociais de todos os tipos têm ido às ruas com alguns assuntos em comum. A educação é um tema recorrente nesses movimentos, seja diretamente — a greve do dia 15 de maio foi pela educação, mas também foi por trabalho —, seja indiretamente, como a do último domingo que, em Curitiba, culminou na remoção da faixa posta na frente do prédio histórico da UFPR.

https://www.youtube.com/watch?v=K0OnzqvbIdg

Não é à toa que a educação superior — ou seja, a educação de adultos mas, principalmente, de jovens adultos — está sob ataque no Brasil. Temos “doutores demais”, segundo o ministro dos chocolatinhos, e muitos acreditam, mesmo com tantas evidências em contrário. Essa tentativa de desmonte na educação pública como um todo acontece agora porque recentemente se consolidou no Brasil o longo processo de transformação da universidade de um ambiente de elite para uma universidade de massas.

Esse é um fenômeno que aconteceu na cultura universitária de muitos países do mundo, em alguns deles com mais pressa que em outros, mas que pode ser traçado com alguma profusão de evidências desde os anos 60 e 70, mesmo no Brasil. Ecos de uma série de reformas universitárias podem ser encontrados em muitos livros de autores da época, sobretudo obviamente os que tratam de educação, e três deles me vêm à mente. Em A Questão da Universidade, Vieira Pinto denuncia as formas que a universidade é insidiosamente usada para a manutenção das relações de dominação na sociedade brasileira no início dos anos 60 [1], poucos anos antes do golpe militar. Em sua teorização dos mecanismos de funcionamento do capital cultural em um artigo cuja referência agora me escapa, Bourdieu aponta um mercado saturado de diplomas que são, mais que um marco na vida do estudante, certificados de competência. Já Umberto Eco, em seu famoso Como Se Faz Uma Tese, apresenta uma outra visão do mesmo contexto:

Mas a universidade italiana é, hoje, uma universidade de massa. A ela chegam estudantes de todas as classes, saídas dos mais diversos tipos de cursos secundários, que às vezes se matriculam em filosofia e letras clássicas depois de haver cursado uma escola técnica, onde jamais estudaram grego ou mesmo latim. E, se é verdade que o latim não tem qualquer serventia para um sem-número de atividades, em compensação ele vale muito para quem segue filosofia ou letras.

Em determinados cursos, inscrevem-se milhares de alunos. […] Muitos têm boa condição, crescidos que foram numa família culta, em contato com ambiente cultural estimulante, podendo permitir-se o luxo de viagens de estudo ou de frequentar festivais artísticos e teatrais, e mesmo visitar países estrangeiros. E há os outros. São estudantes que trabalham e passam o dia no cartório de uma cidadezinha de dez mil habitantes, onde só existem papelarias. Estudantes que, desiludidos da universidade, escolheram a atividade política e buscam outro tipo de formação mas que, cedo ou tarde, terão de submeter-se à obrigação da tese. Estudantes muito pobres que, tendo de escolher um exame, calculam o custo dos vários testes prescritos e dizem: “Este é um exame de doze mil liras”, e optam pelo mais barato. Estudantes que só vez por outra comparecem às aulas e tem dificuldade em achar uma carteira vaga na sala superlotada e que, no final da aula, desejariam falar com o professor, mas há uma fila de trinta pessoas, e têm de apanhar o trem, pois não podem ficar num hotel. Estudantes a quem nunca se explicou como procurar livros na biblioteca e em qual biblioteca […] [2].

No Brasil, esse processo da transformação de uma universidade de elite para uma universidade de massas aconteceu — ou me parece ter acontecido, pelo que posso me lembrar como estudante pouco engajada a um único tema — em pelo menos duas “ondas” na história recente. O primeiro movimento, tratado por Vieira Pinto em 1961, o da reforma — que pretendia, entre outras coisas, fazer com que a universidade se integrasse melhor com as necessidades da sociedade e incluísse o maior número de pessoas possível —, aqui foi atrasado ou retardado em função de uma série de forças em disputa deste espaço. Ao longo de três décadas, e até os anos 90, essa abertura às massas acompanhou a redemocratização e se deu principalmente em virtude de uma mudança no papel social da instituição: se antigamente os cursos superiores eram para serem feitos sem pressa, e esse momento da vida do jovem vivido como um momento de divertimentos e descobertas importantes para seu amadurecimento, luxo que alguns ainda desfrutam, hoje a universidade se vê com a função de preparar seus alunos para o tal do mercado de trabalho. Falhando nesta função, falha a universidade.

Foi apenas nos anos 2000, quando o negócio da educação se massificou ainda mais, que este movimento da elite para a massa se concretizou. Por coincidência, foi nessa primeira década que ocorreram as maiores greves da história das universidades públicas, uma no começo da referida década, e outra no início da seguinte [3]. A universidade pública foi perdendo espaço para a concorrência das particulares, que agora buscavam se desvencilhar do estigma de “uniesquina”. As uniesquinas, por sua vez, se multiplicaram e se diversificaram conforme as demandas e necessidades dos consumidores/estudantes, ajudadas por outra reforma universitária institucional, agora em governos progressistas. Uma grande massa de estudantes mais pobres chegou à universidade: na pública, através de cotas e ampliação de vagas, e também via programas de acesso ao ensino privado, como o ProUni e o FIES.

Uma vez que era inevitável a universalização da universidade, o mercado abraçou a causa da educação superior, dando-lhe novas roupagens, novos atributos, novos formatos e novos objetivos. Se antes a universidade era vista pelo pobre como um mecanismo de ascensão social, hoje ela pode talvez garantir alguma ascensão. Mas na economia dos diplomas da tal “sociedade do conhecimento” [4], a mera formação superior já não garante nada. A rápida mutação do mercado é vista como uma desvantagem das “velhas universidades”, que “não educam para o futuro”. Os cursos das públicas — muitos dos quais atualmente passando ou tendo há pouco passado por reformas curriculares — são vistos como tendo “perdido o bonde do mercado”, quando na realidade é o mercado que se canibalizou e exige cada vez mais produtividade de um trabalhador com tempo e recursos finitos, responsabilizado individualmente por sua própria formação como “empreendedor de si mesmo”.

https://www.youtube.com/watch?v=0P3owEhJHRY

Meu próprio exemplo pessoal é um reflexo desse cenário. Tendo me formado em um curso chamado “Desenho Industrial”, estudei na graduação as tecnicalidades da produção gráfica e desenvolvi habilidades na composição planificada de comunicações visuais que vou levar para a vida toda. Acabei, porém, indo trabalhar com internet e interação na maior parte da minha carreira profissional depois de formada, desenvolvendo de forma independente ao longo de minha trajetória as habilidades necessárias para se lidar com isso, uma vez que não eram cobertas satisfatoriamente pelo meu curso de origem em uma conceituada universidade privada onde estudei de graça. Fiz um sem número de treinamentos formais e informais para lidar com outras tecnicalidades que me foram sendo exigidas ao longo desse processo, que já dura mais de dez anos. Desenvolvi habilidades como pesquisadora em concomitância a tudo isso porque quis muito, e por uma simples necessidade de sobrevivência, de não poder parar porque meu salário no mercado era maior (ainda que bem pouca coisa maior) que as tão disputadas bolsas do meu programa de pós-graduação. Mesmo com formação acima da média, sinto-me despreparada para as exigências permanentemente mutantes do mercado nessa indústria criativa da qual faço parte, onde tudo se desmancha no ar…

Que na educação superior se necessitam reformas, que a universidade precisa se abrir ainda mais para a sociedade, e que a educação é um fator primordial para o pleno desenvolvimento de uma sociedade, a nível pessoal e coletivo, disso não há dúvidas. As discussões a respeito são prolíficas dentro e fora desses ambientes educacionais, e os movimentos nas ruas — à esquerda e à direita, ainda que não exatamente em igualdade de condições na disputa — refletem a necessidade de se pensar um ensino superior de qualidade, onde ele acerta e onde falha. No entanto, a universidade contra a qual se luta agora é justamente aquela que nos põe a pensar nesses movimentos todos: o dos interesses de educadores e educandos, o das elites e o das massas.


Notas

[1] No Brasil, a Reforma Universitária se deu em plena ditadura militar (1968) e visava não apenas controlar ideologicamente essas instituições, mas também remodelar o antigo sistema de cátedras vigente. Essa reforma modificou a estrutura universitária de modo a acompanhar mudanças conjunturais da época, que também provocavam mudanças nas instituições do tipo em outros países, puxadas por movimentos de classe e estudantil.

[2] ECO, Umberto. Como Se Faz Uma Tese. Tradução de Gilson Sérgio Cardoso de Souza. 22ª edição. São Paulo: Perspectiva, 2009. p. XIII-XIV.

[3] Esta última foi uma greve que vivi na pele, mas não do jeito engajado que agora pode parecer. Durante quatro meses do ano de 2012, fui esporadicamente ao meu campus universitário apenas para checar se meu desprendimento da realidade estava em níveis normais devido ao agravamento de um quadro de depressão mal tratado e a um relacionamento de merda. Se o mundo à minha volta dizia que a greve persistia, era porque a greve persistia. Cumpri obrigações mecanicamente e me culpei durante todo o tempo por não estar lendo o que deveria ler em Condições Ideais, nem aproveitando o tempo para ir “adiantando as coisas”, mesmo sem saber que coisas seriam essas a adiantar. Li toda a série A Song of Ice and Fire publicada até aquele momento, e um dos meus livros favoritos, Declínio e Queda do Império Romano. Persisti na fuga da realidade, uma vez que tudo estava em suspenso por tempo indeterminado. Dessa última parte específica, não me arrependo.

[4] Ou “sociedade da informação”, “sociedade cognitiva”, ou “inteligência coletiva”. Depende do autor ou do nível de ingenuidade de quem faz uso desses termos.

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