Desvio padrão

Quando eu estava na faculdade, a palavra da moda era “lúdico”. Tudo era, ou tinha que ser, lúdico. Todo projeto levava essa palavra em sua conceituação, todo mundo buscava encaixar o projeto direitinho no que significa ser a ideia que essa combinação de letras quer transmitir.

Confesso que nunca fui atrás de saber o que exatamente significa “lúdico”, ou qual a origem desse termo e em qual idioma essa palavra primeiramente se manifestou. Eu criei na minha cabeça um conceito da palavra baseado nos contextos onde já vi ela sendo usada. Desse modo, lúdico para mim é algo referente à criança, à brincadeira, à lazer e à diversão. Ela diz respeito também à jogo, ou seja: montar um universo particular com regras específicas e viver sob essas regras durante um tempo determinado. Tudo isso pra mim é lúdico*.

Mas na época em que conheci a palavra, apesar de ela parecer significar todas essas coisas, ela era aplicada a coisas que não tinham nada a ver com seu significado. Nada a ver a ponto de causar constrangimento embaraçoso** no boletim do aluno.

Outra palavra que aparece sazonalmente e também é carregada de constrangimentos em seu uso é “brasilidade”. Tinha muita gente usando “brasilidade” nessa época. Nem sabíamos que o Brasil seria sede da Copa do Mundo ainda, mas fazíamos produtos para gringo cheios de brasilidade, fosse lá o que isso significasse. Essa eu nunca fui no dicionário olhar porque tenho a certeza absoluta de que a minha definição é muito melhor que a deles. Brasilidade é um conjunto amorfo de estereótipos sobre o Brasil, unidos pela vontade de agradar e o medo de passar vexame. Ginga, malemolência, samba no pé. Sol, calor, praia, Floresta Amazônica. Capoeira, candomblé, acarajé.

Todas essas coisas não têm qualquer relação com o sul do Brasil (se você desconsiderar o litoral de Santa Catarina, claro). O sulista em geral se orgulha disso, boa parte tem delírios gravíssimos de classe média e se vê como uma etnia injustiçada, e alguns até instalariam eles mesmos o arame farpado para delimitar as novas fronteiras da América Latina. Apesar disso, algumas vezes demonstram que gostariam de ser representados entre os brasileiros. E por vezes, também, acabam vergonhosamente se identificando com os brasileiros em aspectos que repudiam — e é daí que vem a individualidade crônica do sulista***.

O sulista é um sujeito estranho. Ele olha muito à sua volta ao mesmo tempo em que não presta atenção em nada. Ele vive em lugares onde chove a maior parte do ano e ainda não descobriu como faz para usar guarda-chuva nem lidar com toda essa molhaceira. Ele não olha nos olhos de ninguém porque todo mundo parece olhar para ele o tempo todo, e isso o deixa maluco porque é o combustível perfeito para sua paranóia engatilhar (mais) uma crise de auto-estima. O sulista prepara suas cidades para o turismo, mas odeia receber visita. Ele fica o tempo inteiro se indagando se aquela pessoa estava sendo sincera mesmo ou não. Mas o sulista bate no peito e diz: “eu sou assim mesmo!”, e torce para que todos interpretem aquilo como orgulho e superioridade. Todo mundo apenas acha… tosco.

Mas o paranaense é um outro tipo de sulista. Ele é aquele bebê-urso cuja placa de gelo onde estava se desgrudou da placa de gelo da mãe, está sendo arrastado pela correnteza e não sabe muito bem o que fazer agora. O paranaense está ali: no limite entre a brasilidade e a falta de identidade. Se o Paraná pudesse, ele parava o tempo para dar tempo de estabelecer seus próprios limites, mas é tanta gente entrando e saindo desse estado o tempo todo que fica difícil. É por isso que o Paraná fica brincando de ser uma e outra coisa o tempo inteiro e nunca é nada. Assim, de uma maneira bem lúdica.


*Nesse ponto do texto eu parei de escrever e fui ver no Google o significado de “lúdico”. É aquilo que é referente ao jogo, e que se faz pelo prazer de fazer. Acho que não passei muito longe.

**”Constrangimento embaraçoso” é uma hipérbole ou uma redundância?

***Isso também acontece com São Paulo, acho.

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3 Comments

  1. O paranaense é bicho inclassificável. E pior, eu tenho orgulho de ser daqui. Vai entender!

    Há quem diga que nós somos apenas o “corredor”, mas eu acho besteira, temos nossa importância e identidade, ainda que meio indefinida no meio de um país imenso como esse.

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