O texto abaixo foi escrito originalmente como parte de um projeto de pesquisa para a seleção do doutorado em Ciência Política da UFPR em 2018. Bati na trave no processo seletivo, mais ainda gosto muito do que produzi e deixo aqui para apreciação de quem, como eu, se interessa por esses temas. Outro pedaço dele pode ser acessado aqui.
A tecnologia, como processo e produto das interações sociais em um dado tempo e lugar, manifesta-se material e imaterialmente através de seus processos, artefatos e redes de interações entre indivíduos e aparatos. Refletindo os valores de seus produtores e meios, ela pode ser compreendida de forma acrítica — como mero modo de produção de objetos, como suas manifestações materiais propriamente ditas, e como um conjunto de técnicas de que dispõe um povo em um dado contexto.
Entretanto, é preciso também compreendê-la de forma crítica, para além de suas ocorrências óbvias. Assim, a tecnologia também pode ser entendida como um constructo social complexo, que constitui e é constituída pela sociedade. Desse modo, é possível compreender a tecnologia como uma rede que envolve sistemas, artefatos e pessoas, e que tem imbricada em si mesma não apenas as ideologias de seus produtores e interatores, mas sendo ela própria uma ferramenta de construção ideológica (VIEIRA PINTO, 2005. p. 219-225).
Para compreender a tecnologia como ferramenta ideológica, é preciso compreender o significado desse adjetivo. Pode-se entender “ideologia” como um processo material geral de produção de ideias direcionadas à ação que refletem, promovem e legitimam certas “visões de mundo” relativas a conflitos de poder social. Esse processo envolve a promoção de crenças e ideias ilusórias que, ainda que não necessariamente sejam falsas, podem se valer de dissimulação e distorção de fatos reais para se mostrarem plausíveis (EAGLETON, 1999).
A ideologia, por si só, não serve tanto como mecanismo de controle social, mas como consolidadora de poderes através das disputas no campo do significado. O consentimento dos dominados se dá mais pelas suas condições materiais de existência do que por um convencimento genuíno deles de que as ideias a eles expostas são legítimas. Mas é através da disputa ideológica pelos significados que se encobrem os sistemas materiais de opressão: “Dominação deve incluir o controle sobre o significado se as relações de governo forem disseminadas enquanto interesses de todos. É o significado que pode estar comprometido com a dominação, não a verdade” (THOMPSON, 2001. p. 31. Tradução livre).
Os processos ideológicos de legitimação de poder envolvem também o descolamento das ideias e valores propagados por eles de seus contextos históricos, levando à naturalização dessas ideias e à identificação dos dominados com o poder dos dominantes, e convertendo, assim, o controverso em óbvio:
O estudo da ideologia é, entre outras coisas, um exame das formas pelas quais as pessoas podem chegar a investir em sua própria infelicidade. A condição de ser oprimido tem algumas pequenas compensações, e é por isso que às vezes estamos dispostos a tolerá-la. O opressor mais eficiente é aquele que persuade seus subalternos a amar, desejar e identificar-se com seu poder; e qualquer prática de emancipação política envolve portanto a mais difícil de todas as formas de liberação, libertar-nos de nós mesmos. (EAGLETON, 1999. p. 13)
Enquanto batalhas travadas no campo do significado, as disputas ideológicas operam diretamente na vida cotidiana, através de experiências e em cenários familiares ao público ao qual esses enunciados se destinam. Essas estratégias têm como intenção o direcionamento da ação coletiva e da opinião pública e, como finalidade, o estabelecimento da hegemonia em um dado contexto social. Observar essas disputas deve, portanto, partir de um ponto de reconhecimento da existência desses conflitos, o que implica que essa observância não se dá de forma neutra. Para uma análise desse tipo, portanto, é necessário estipular parâmetros relativos à forma como esses discursos são codificados e entender as formas, linguagens, e filtros pelos quais a informação passa, do processo de sua configuração até que seja decodificada dentro dos limites das definições dominantes na tentativa de cumprir os propósitos de seus enunciadores.
A questão da “estrutura dos discursos em dominância” é um ponto crucial. As diferentes áreas da vida social parecem ser dispostas dentro de domínios discursivos hierarquicamente organizados através de sentidos dominantes ou preferenciais. Acontecimentos novos, polêmicos ou problemáticos que rompem nossas expectativas ou vão contra os “construtos do senso comum”, o conhecimento “dado como certo” das estruturas sociais, devem ser atribuídos ou alocados aos seus respectivos domínios discursivos, antes que “façam sentido”. A maneira mais comum de “mapeá-los” é atribuir o novo a algum domínio dos “mapas existentes da realidade social problemática”. Dizemos dominante e não “determinado”, porque é sempre possível ordenar, classificar, atribuir e decodificar um acontecimento dentro de mais de um “mapeamento” (HALL, 2003. p. 374).
Ainda que a forma distribuída e descentralizada de criação e difusão de conteúdo própria da internet tenha colaborado para a criação de uma “mística” em que suas redes pudessem servir como uma possibilidade de emancipação social e política, tornando ultrapassadas algumas das análises a respeito da cultura e das mídias de massa, essa previsão não se concluiu. Ao contrário: as grandes plataformas de usuários, quando não disputam a hegemonia dos mass media em moldes semelhantes, têm sido usadas por eles como mais um canal de atuação.
Ainda que a difusão da infraestrutura de internet tenha permitido aos usuários da rede a criação de suas próprias plataformas, manter um sistema desses no ar exige um investimento mínimo e algum conhecimento técnico, o que acaba encorajando o uso das plataformas privadas. Assim, as mecânicas de criação de consenso, propagação ideológica e hegemonia, conforme descritas e teorizadas por estudiosos desses temas, ainda se mostram ferramentas de análise úteis no sentido de identificar a ação desses discursos.
Um conceito útil para esse tipo de análise é o de indústria cultural, cunhado por Adorno e Horkheimer (1985). Entendido como a expansão do capitalismo sobre a cultura, o conceito ressalta o papel das grandes corporações na industrialização de vários — senão todos — aspectos da vida cotidiana. Uma vez que transforma toda a dimensão da atividade humana, da arte até as relações, em produtos a serviço do sistema de produção que busca preservar e do qual depende para continuar existindo, a indústria cultural teria, portanto, um caráter mistificador da realidade e objetificador das relações humanas [1]. A legitimação dessa mercantilização da vida se dá por propagação ideológica através dos próprios produtos que tal indústria visa circular, implicando não somente na perda da “aura” de autenticidade dos produtos culturais (BENJAMIN, 2018), mas também comprometendo a própria autonomia das pessoas coisificadas nesses processos.
Em “Manufacturing Consent”, Herman e Chomsky (2008) apresentam um modelo de propagação ideológica pelas mídias de massa e imprensa. Os autores destacam que, em ambientes políticos onde não existe censura formal dos meios de comunicação, a atuação dessa propaganda é ainda mais velada e sutil que em contextos onde há clausura. Segundo o modelo, a aquiescência da população aos interesses de grupos dominantes e em choque direto com os seus próprios se dá pela manipulação da informação circulante a partir da passagem desta por cinco grandes filtros. O primeiro deles tem relação com o fenômeno da “industrialização da imprensa”, que aconteceu a partir do século XIX, ganhou força com a televisão e atingiu ponto crítico com o advento da internet e das companhias de TV a cabo no século XX. A manutenção de uma estrutura de mídia que atinja grandes audiências depende de grandes investimentos, o que acaba por comprometer a independência e a isenção dos veículos de mídia. O segundo filtro, diretamente relacionado com o primeiro, trata da necessidade de financiamento da mídia através da venda de tempo e espaço para anunciantes publicitários, que buscam grandes audiências com poder de compra e custeiam conteúdos conforme a possibilidade de retorno financeiro. O terceiro e quarto filtros dizem respeito às disputas pela narrativa das informações circulantes propriamente ditas, seja pela criação de fontes “oficiais” que “facilitam” o trabalho dos profissionais de mídia no momento da cobertura dos fatos (terceiro filtro), seja pela coação e punição desses profissionais e veículos por seus patrocinadores e opositores caso as histórias publicadas por eles porventura fujam da narrativa preferencial (quarto filtro). O quinto filtro caracteriza a demarcação de um “inimigo comum”, através do ocultamento de informações, demonização de discursos de oposição e criação de “espantalhos”.
O modelo proposto por Herman e Chomsky é interessante por levar em conta muitos dos fatores-chave necessários para entender os mecanismos sócio-políticos em que operam as ideologias e pode contribuir bastante para uma discussão que abarque o cenário em rede, mas é incompleto dada sua especificidade. Assim, essa compreensão teórica pode ser complementada com outras visões. Raymond Williams (1979), baseando-se no conceito de hegemonia de Antonio Gramsci, assinala três processos diferentes e complementares no campo das disputas ideológicas: a ideologia dominante, a ideologia residual e a ideologia emergente. O primeiro corresponde aos sistemas de crenças vigentes, responsáveis pela manutenção da ordem social tal como ela se encontra e é o tipo mais difícil de ser desafiado, dada sua pregnância na vida social. As ideologias residuais correspondem a crenças e práticas derivadas de estágios sociais anteriores, que fizeram parte de ideologias anteriormente dominantes e têm sua sobrevivência manifestada principalmente nas mitologias e tradições que ainda governam o presente. Já as ideologias emergentes dizem respeito aos valores e práticas que disputam a hegemonia com as ideologias dominantes na intenção de reorganizar a ordem social.
Baseando-se em algumas dessas teorias e autores, Nescolarde-Selva et al (2017) propõem um modelo matemático que sistematiza essas relações a partir de uma compreensão relacional dos componentes que constituem uma ideologia e suas variáveis, e concebe essas relações enquanto um sistema impuro [2]. Seu modelo toma como princípios constituintes de uma ideologia o seu sistema de valores e crenças, o comportamento e a linguagem usadas pelos seus partidários, as suas perspectivas e recomendações de conduta e o aparato organizacional de ativismo que uma ideologia faz uso para atingir seus objetivos. Considera, também, como variáveis ideológicas os graus em que as crenças substanciais que compõem as ideologias relacionam-se umas às outras, sua relevância empírica em face da realidade, a tolerância da ideologia a ideologias concorrentes e às inovações dentro de seu próprio corpo de crenças, o grau de comprometimento dos componentes do veículo social em que uma dada ideologia circula, e a percepção de seus adotantes de que aquele sistema de crenças representa uma “verdade eterna”. Esses parâmetros partem de uma compreensão dos mecanismos ideológicos que leva em conta as interações entre a ideologia dominante em um determinado contexto, os mitos que originam as ideologias em voga e as utopias que direcionam a ação dos adeptos.
Notas
[1] Referência ao conceito de “fetiche da mercadoria” utilizado por Marx em O Capital (2011).
[2] Sistemas impuros são aqueles cujos elementos são objetos e sujeitos, sendo os sujeitos os seres humanos imbricados no sistema, e os objetos as significações e interpretações originárias das crenças perceptuais dos sujeitos e suas relações. Se diferem dos sistemas puros/abstratos por não possuírem entidades e relações puramente matemáticas e abstratas.
Referências
ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Tradução de Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
BENJAMIN, Walter. A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica. São Paulo: LP&M, 2018.
EAGLETON. Terry. Ideologia, uma introdução. Segunda edição. São Paulo: Fundação Editora UNESP, 1999.
HALL, Stuart. Da Diáspora: Identidades e mediações culturais. Org. Liv Sovik. Tradução por Adelaide La Guardia Resende et al. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.
HERMAN, Edward S.; CHOMSKY, Noam. Manufacturing Consent: The Political Economy of the Mass Media. Londres: The Bodley Head, 2008.
MARX, Karl. O Capital. Livro I. Tradução de Rubens Enderle. Segunda edição. Coleção Marx & Engels. São Paulo: Boitempo Editorial, 2011.
NESCOLARDE-SELVA, Josué Antonio; USÓ-DOMÉNECH, José-Luis; GASH, Hugh. “What Are Ideological Systems?”. Systems. V. 5. N. 1. 2017. Disponível aqui — Acesso em 19 de junho de 2018.
THOMPSON, Denise. Radical Feminism Today. Londres: SAGE Publications, 2001.
VIEIRA PINTO, Álvaro. O Conceito de Tecnologia. v. 1. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005.
WILLIAMS, Raymond. Marxismo e Literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.