Essa semana foi meu aniversário de vinte e nove anos. É o último dos “vinte e”, e tá me assustando menos do que eu achava que ia assustar. Os últimos dez anos me fizeram muito bem, independente das cagadas que aconteceram pelo percurso. O progresso que fiz de 2006 para cá é, fazendo a comparação agora, a melhor parte da minha vida. Não sei se sou uma pessoa melhor, mas eu gosto muito mais disso aqui que daquilo lá.
Estou inaugurando neste exato momento a série “Textinhos para ler no celular“. São um conjunto de textinhos de curta e curtíssima metragem feitos para… er… ler no celular. Aprecie-os durante aquela engarrafada no trânsito naquele trajeto que você faria em meia hora, no máximo, de bike, e que você não faz porque é meio perigoso ou pode chegar fedendo no trabalho.
Li recentemente o livro da Aline Valek. “As Águas Vivas Não Sabem de Si” é lindo. Tem horas que você está lá lendo e pensa: “Aline, você é espetacular escrevendo, minha filha. Continua assim que você vai longe”. O problema do livro é que não me senti cativada por nenhum personagem — o que, se for pensar bem, não é um problema que invalida uma obra: existem vários ótimos livros com personagens nem tanto assim. O livro me foi oferecido pela Sharon, uma amiga de Pato Branco. Surgiu bem na hora que resolvi dar uma olhada no que o mercado editorial brasileiro anda lançando por aí além de Nova Literatura Fantástica Brasileira.
O espanhol é um idioma de ansiosos. Todos os tipos de ansiedade ficam muito bem representados em língua espanhola.
Estava lendo o El País e me deparei com uma palavra que fez tudo finalmente fazer sentido quando se trata de nomes estranhos de iguarias de se comer em feriados específicos: “rebanada” significa “fatia” em espanhol.
Tem uma galera que sugere o fim da previdência pública porque hoje as pessoas vivem mais que na época em que o conceito de aposentadoria foi criado — fins do século XIX por Otto Von Bismark. Acredito que provavelmente vou trabalhar até morrer dada minha classe social, e é exatamente por isso que quero ir para o magistério. Não é mais fácil, mas até agora tem sido bem legal. 🙂
“We tested the levels of the pH this morning. Only Pee, no H.” — SOUTH PARK. “Pee“. S13E14, 2009.
A segunda melhor parte do inverno é poder se embolar sob duas toneladas de cobertas e fingir que está de volta ao útero, aquele momento primordial em que nada em nossa vida era objeto de preocupação e você mal se dava conta de que existia. Nada pode se comparar em prazer diante disso. Nada.
Uma teoria de mulheres que fale que mulheres são subjugadas em função de seu papel na reprodução sexuada da espécie humana — cujas potencialidades têm sido sequestradas por uma ideologia que foi uma das responsáveis pela estruturação da sociedade tal como ela é hoje — não é feminismo radical. É só “feminismo”, mesmo.
O feminismo radical é a prova cabal de que resignificar palavras não dá certo nem garante que alguma coisa vai mudar na sociedade pelo simples ato de as pessoas pararem de usar certos termos ou trocar o significado de outros: “feminismo” foi um apelido de tom pejorativo empregado pelos jornalistas franceses para se referirem às mulheres que lutaram pelo sufrágio universal naquele país; e “radical” é um termo pejorativo usado para se referir às feministas queimadoras de sutiã dos anos 1960. Ambos os termos são usados para se referir a mulheres, essa persona indefinida mas circunscrita em um papel social bem específico, e que está ao alcance de qualquer um poder encarnar.
O problema de focar na linguagem é que ela é muito fácil de manobrar, se você for esperto.
Como sexo pode ser libertador para mulheres em uma sociedade em que ele próprio é ferramenta de dominação?
Me desespero muito quando vejo que estou demorando demais para aprender alguma coisa. Entro em pânico e começo a duvidar da solidez de todo o conhecimento que adquiri até aqui. Como consequência, hesito em botar mais qualquer outro tijolinho nessa obra bamba.
Com programação foi assim comigo, até que muito recentemente — semana passada? — me dei conta de que se eu parar e prestar a atenção devida no conceito sem perder o controle e pirar louca na ansiedade, eu até que aprendo direitinho e relativamente bem rápido. Pode parecer óbvio para a maioria das pessoas, mas para mim tem sido libertador conseguir parar por alguns minutos e só pensar… nisso: o problema abstrato que está diante de mim neste exato momento. Isso é apenas impossível para alguém que tem atenção deficitária, como eu.
Sim, arranjei um novo emprego. Estou fazendo quase que exatamente a mesma coisa que fazia na Gazeta do Povo, mas sem a parte do impresso e nem a das enguias1. Depois de oito meses parada, percebi que finalmente desacelerei e descansei. Parece que finalmente consegui enxergar a vida sem todo aquele estresse — coisa que nunca tinha conseguido antes, considerando qualquer uma das “férias” que tirei desde que me tornei uma trabalhadora assalariada.
E desde que me tornei uma trabalhadora assalariada, o último período de grande estresse para mim foi o mestrado, onde pesquisei sobre mulheres na ciência em geral e na computação em particular. Nas entrevistas que fiz para essa pesquisa, as gurias falavam muito que quando elas estavam tentando aprender a programar, às vezes chegavam nuns momentos de desespero. Até que dava o click: de algum modo o seu cérebro entra no Vórtice da Perspectiva Abstrata Total Necessária à Compreensão Daquele Problema de Lógica, você finalmente entende como funciona aquela máquina e porque você está conversando com ela daquele jeito tão esquisito.
Essa foto é tão linda! ♥
É bem verdade o que aquelas meninas doidas2 falaram: fazer programa dá dinheiro mesmo. Estou pagando minhas contas assim. Infelizmente — para o desconsolo da assombração que habita a cabecinha delas, é claro —, não é aquele tipo de programa, é outro.
Antigamente isso era coisa de mulher, depois virou coisa de nerdão que anda com a calculadora no bolso, e no futuro todo mundo vai precisar saber pelo menos o básico da lógica. Também está afim? Sugiro começar por aqui.
1. Piada interna. Não tente entender. Pelo amor do Altíssimo, não!
Foi notícia em vários jornais de alcance nacional: ex-colegas de trabalho da Gazeta do Povo foramprocessados trinta e sete vezes este ano por duasmatérias que saíram em fevereiro sobre o salário médio de magistrados em comparação com o teto da categoria. Dizendo-se ofendidos, os magistrados já obrigaram os profissionais a conhecer todo o estado do Paraná, viajando mais de seis mil quilômetros para comparecer às dezenove audiências que já ocorreram, em que a presença deles é compulsória. O conteúdo das ações, segundo matéria da segunda edição do Paraná TV de hoje, dá a entender que os caras apenas copiaram e colaram o texto uns pros outros e entraram na justiça de forma individual, para não parecer (muito) suspeito.
As organizações de imprensa do Brasil e do Paraná já se manifestaram em repúdio, enquanto que as associações dos magistrados e do Ministério Público soltaram notinhas irônicas e debochadas — eu, pelo menos, vi muito deboche em “apenas 2% dos associados entraram com ações” —, dizendo que qualquer um tem direito de processar quem quiser pois este é um direito constitucional. A melhor parte dessa história é que dois dos processados eram meus colegas de baia, e certamente eu estaria envolvida nisso se não tivesse sido demitida do jornal no penúltimo Passaralho, em agosto de 2015.
Na meleca em estamos enterrados até o pescoço desde as eleições passadas, quem vigia os vigilantes se a imprensa está de mãos atadas? E a vingança pra lá de sádica de fazer de bobos em viagens inúteis cinco trabalhadores que, juntos, não devem ganhar o que essa galera dá de mesada para os filhos?
Mudando um pouco de assunto — mas só um pouco —, as redes sociais ferveram na semana passada.O motivo foi a falta de noção e de senso de ridículo de um colunista do Diário do Centro do Mundo, por conta de um texto absurdo, seguido de atitudes ainda mais absurdas do responsável pela conta do jornal [jornal? portal?] no Twitter.
Ou seja: se por um lado não podemos confiar na imprensa por conta da pauperridade com que é feito muito do jornalismo em alguns de seus veículos, por outro é muito melhor com eles que sem. Como disse o Rodrigo:
Se não for pela mídia burguesa, por onde poderemos nos informar sobre acontecimentos além dos que podemos ver com os nossos próprios olhos?
[…] A ideia de “não acreditar na imprensa burguesa” é inevitavelmente ligada a teorias da conspiração. Ela depende da ideia de que alguma agência da burguesia, a CIA ou qualquer outra, pode controlar toda a mídia burguesa por trás dos panos e, ao mesmo tempo, fornecer à burguesia os fatos reais.
Só sei que depois dessa tamancada, o Guilherme vai trocar a bio do Twitter para “o responsável pelo visual gráfico das matérias”.
As plataformas venceram — prova maior disso é a imprensa pedindo penico ao Facebook. A minha sorte, por ora, é que este blog que você está lendo não tem qualquer pretensão (nem de ser lido) e o Manual encontrou alguns leitores que entenderam o recado e veem, como eu, a beleza de não estar e não depender de uma rede social, de uma plataforma controlada por gente que não está muito preocupada com o que eu escrevo nem com as pessoas que me leem e que frequentam aquele espaço.
Uma coisa que acho que gostaria muito de fazer é criar uma editora. Sempre gostei da idéia de preparar e selecionar material para publicação, e trabalhar em editora — não como designer de capa e miolo, mas com criação ou auxílio para produção de conteúdo — é algo que sempre quis fazer.
Desde criança eu fantasiava com a idéia de ter uma publicação periódica para leitura em que também se disponibilizasse atividades lúdicas, como jornais e revistas fazem com os quadrinhos e as palavra-cruzadas. Minha prima Aline, por exemplo, recebia em Curitiba pelo correio diretamente de Maringá o meu almanaque, com curiosidades, jogos e caça-palavras. E mesmo quando não tinha almanaque, minhas cartas tinham formas de leitura e formatos diferentes, brincadeiras com cores, eram muito lúdicas.
Já tendo trabalhado de fato em uma editora — a Gazeta do Povo — que publica* periódicos, acredito que sei pelo menos por alto como funciona o processo de criar, selecionar, editar e publicar conteúdo e estava pensando em fazer isso de uma forma bem independente. Alternativa, hipster no sentido absoluto da coisa mesmo: ninguém nunca vai ouvir falar nisso, mas o registro estará lá caso alguém queira citar.
Pois então é isso: enquanto todo mundo está aí tirando MEI e virando PJotinha, eu estou querendo ISSN. Já dei uma lida bem mais ou menos em como funciona o processo para registro de um periódico, e estou pensando seriamente** no assunto.
*Ou, pelo menos, publicava: soube que recentemente o formato do jornal mudou de standard para berliner, economizando muitos metros quadrados de papel e litros de tinta em sua publicação.
**Isso significa que na prática pouca coisa substancial será concretizada, mas isso será um pensamento recorrente meu.
Finalmente vi a season finale de Narcos*. E aí comecei a pensar em umas coisas. Não se surpreenda se esse for outro daqueles meus textos sem pé nem cabeça, deu um pouco de trabalho costurar tudo isso.
Foi mal o spoiler.
Aqui no Brasil foram pouquíssimas as vezes em que algum político esteve sob ameaça física. As últimas vezes de que me lembro de uma morte de político de forma violenta foram os casos de Celso Daniel em 2002, e do PC Farias em junho de 1996, ambos envolvendo investigações de fraudes financeiras e enriquecimento ilícito. Aí fico me perguntando — e me perguntando também o quão seguro é fazer essa pergunta: os políticos no Brasil têm negócios com os traficantes locais? Dá para acreditar no cagaço que o Gaviria — candidato e, mais tarde, presidente da Colômbia — ficou quando viu que podia morrer a qualquer momento? Quando algo minimamente parecido com isso aconteceu no Brasil? Quando algum político aqui arriscou o pescoço de forma tão literal?
Sempre que surge notícia de algum político negociando com traficante todo mundo abafa logo o caso — e ninguém que não seja da imprensa e não esteja pelo menos protegido pela fina malha de um sindicato e um punhado de leis vai se meter com isso. Daria uma discussão imensa: se os políticos brasileiros têm negócios com traficantes, talvez esse seria um bom motivo pra legalizar as drogas. Só políticos com motivos escusos proibiriam drogas e negociariam com traficantes ao mesmo tempo.
Há bem pouco tempo surgiu a notícia da apreensão de um helicóptero que transportava 450 kg de cocaína, veículo da família de um deputado de Minas Gerais associado a um ex-candidato à presidência da República. O caso foi apelidado de helicoca. Até onde pude ver, a imprensa não apurou muita coisa. E por quê o Quarto Poder nem se deu ao trabalho de investigar, se isso é uma possibilidade verdadeira?
A resposta dessa, em tempos de Passaralho, é fácil: ninguém na imprensa está disposto a arriscar tanto. Tá todo mundo falido, e já não se sabe se é porque nenhum jornal parece mais estar disposto a se esforçar a ser bom de verdade para que alguém pague por sua cobertura dos fatos, ou porque ninguém parece disposto a financiar algo tão intangível quanto o noticiário**.
O que tem acontecido na imprensa hoje — e posso falar com alguma propriedade, visto que trabalhei na fábrica de salsichas por quase quatro anos e meio — é que se investe no público que vai pagar pelo jornal, não importa muito do que esse público goste*** ou esteja afim de ver/consumir. O jornalismo se tornou um filão de entretenimento, um entre muitos outros, e certamente não vai conseguir se manter por muito tempo no modelo antigo.
E quem vai investigar tudo isso, se a imprensa está frágil demais para comprar essa briga?
Deixo abaixo, em forma de lista — o já clássico formato do jornalismo atual — algumas dúvidas que todo esse assunto me deixou na cabeça:
Todo mundo acredita piamente que no Brasil político só faz negócio escuso com produto legal? Com construtora e fornecedora de equipamento médico?
Alguém já parou pra pensar no tamanho do vespeiro que é mexer com a legalização das drogas no Brasil — algo que se começou a fazer há pouquíssimo tempo? É seguro mexer com isso?
O quanto isso impactaria a vida política no Brasil? Temos como saber isso ou a nossa débil imprensa vai publicar somente o que lhe cair ao colo e não der para esconder?
Legalizar drogas poderia evitar perdas humanas, ou algumas pessoas ainda podem morrer no processo? O quanto isso ajudaria quem realmente morre na guerra do tráfico, e o quanto só facilitaria a vida do maconheirinho de ocasião?
Só a maconha, ou todas as drogas devem ser legalizadas/descriminalizadas/regulamentadas?****
*Não sei porque tornaram Narcos uma série sobre o sotaque do Wagner Moura. Ele nem é o protagonista! O protagonista é o Murphy, o que acho muito que bem. Naonde que americano ia ter competência para escrever uma história narrada do ponto de vista colombiano? Pra isso temos a ótima El Patrón del Mal, recomendadíssima!
**Ou se é porque estão comprometidos com as pessoas erradas. Não estou acusando ninguém, mas é uma possibilidade.
***A Gazeta do Povo, “o grande jornal do Paraná”, está diversificando a produção de conteúdo e focando em um público mais conservador. Certo eles: tamo aí numa onda conservadora, se eles fizerem o troço direito podem embolsar algum dinheiro. Não sei se suficiente para manter um jornal do porte que a Gazeta era alguns anos atrás, mas já é alguma coisa.
****Legalização da maconha significa legalizar uma droga mais leve, mais popular e menos danosa. Mas a legalização de drogas como a cocaína, por exemplo, significa um dilema ético bem mais complicado, porque na prática é tornar disponíveis substâncias tóxicas e a que qualquer um teria acesso. Ou não, se esse comércio fosse regulado.
Acredito que alguns livros não deveriam ser lidos. Não até o fim, pelo menos. Não por todo mundo, quero dizer — essa regra vale para mim. E não que haja qualquer coisa de errada que seja com esses livros em particular, e nem que eles devam ser proibidos. É algo mais como “eu não preciso de fato ler isso aqui”.
Lembro de quando decidi que deveria ler Fundação. Faz um par de anos. Considerado uma das obras primas de Isaac Asimov, Fundação se inspira na obra de Edward Gibbon — que escreveu um dos meus livros favoritos — para contar a história de que providências a humanidade iria tomar depois que previsse o próprio fiasco. E é essencialmente isso o que eu retive da história: uma sinopse curtíssima.
Mas tem uma coisa a respeito desse livro que eu me lembro muito bem, e posso descrever em detalhes. Lembro como se fosse hoje da minha reação ao avançar lentamente através de cada uma das páginas de papel jornal da minha edição. Havia comprado tanto este volume quanto o Prelúdio à Fundação numa promoção de 1 dólar na Better World Books, mas sofri quando os livros chegaram por causa do nível do meu inglês. Outro par de anos mais tarde perguntei sobre a série a alguns amigos que a tinham lido, e finalmente decidi que me aventuraria nos livros pela sua ordem de escrita*.
Acho que o processo todo entre tomar a decisão, pegar o livro nas mãos, e posteriormente depositá-lo na estante lido levou aproximadamente um mês, talvez um pouco mais. E me pareceu muito mais que isso. Cada vez que eu tirava o livro da bolsa, tinha que me convencer de que aquela era uma obra importante e que, se eu me dizia uma fã de ficção-científica, era minha obrigação lê-lo. Só que o livro é muito chato. Muito, muito chato. Me pegava pensando: “Meu deus, quando esse tormento vai acabar?”. Assim, desenvolvi algumas estratégias para manter a atenção na leitura: reparava na quantidade de tempo que se pulava entre uma parte e outra, contava quantas eram as personagens mulheres e qual o papel delas na trama, grifava os trechos em que Asimov conceituava ou retratava o papel social da tecnologia**, notava como era retratado o líder, esse tipo de coisa.
Minha cópia em foto recente.
Não adiantou. Tive algumas boa idéias durante a leitura, cheguei a algumas conclusões a respeito do Asimov enquanto escritor, mas o que me sobrou da narrativa e do enredo propriamente ditos foi algo próximo de nada. Ler Fundação foi um processo tão cheio de sacrifícios para conseguir me manter atenta na leitura que não consegui extrair nada de bom do livro. Fiquei pensando na minha empolgação ao ler Eu, Robô alguns anos antes, o punhado de contos aleatórios que pegava na internet de vez enquando, e o sentimento era bem oposto. O que raios o Asimov tinha feito em Fundação que tinha tornado o livro o fenômeno cultural que era, se ele (o livro) era tão profunda e absolutamente chato?
Pouquíssima gente que conheço havia de fato lido essa saga do escritor cuja personalidade resume tudo o que há de errado no chamado “universo nerd”. Existem poucas pessoas com quem conversar a respeito das impressões de leitura. Nem por essa experiência paralela, que para mim é uma das mais interessantes quando se trata de consumir algum tipo de obra de arte, Fundação tinha valido a pena. De que maneira eu poderia aproveitar todo esse tempo perdido?
Guardei o livro de volta na estante. Quanto ao Prelúdio, sequer abri. Não preciso continuar lendo isso.
*É uma regra sagrada para mim, que estabeleci ao longo da vida: sempre que me deparar com uma série não-linear, seguir a ordem de publicação. Não sei explicar exatamente o porquê, mas me sinto menos enganada dessa forma.
**Fiz mestrado em uma área interdisciplinar conhecida como Ciência, Tecnologia e Sociedade, uma mistura de história, sociologia, filosofia, design e outras áreas de abrangência indefinida que prega a construção social da tecnologia. A mocinha daquele vídeo descreveria a área com os únicos adjetivos possíveis: “bem louco” e “empolgante”.
Mansão do milionário Douglas Maldonado. Externa. Meio da tarde. DOUGLAS MALDONADO está sentado numa espreguiçadeira ao lado da piscina. Um cachorro preto brinca a seus pés com uma bola de borracha. Douglas Maldonado está pensativo, e suspira ruidosamente enquanto segura o queixo na mão direita. BRÁULIO entra em cena carregando uma bandeja.
O milionário Douglas Maldonado abre seu coração neste emocionante episódio inédito!
BRÁULIO
Aqui está o chá que o senhor pediu, senhor Maldonado.
DOUGLAS MALDONADO
Obrigado, Bráulio. (Pegando a xícara da bandeja que Bráulio deixa sobre uma mesinha de jardim. Bráulio se posiciona a uma distância respeitosa de seu patrão) Fez o que lhe pedi para fazer?
BRÁULIO
Sim, senhor Maldonado. A essa hora a família de Paola Bracho já deve saber que ela está internada no hospital.
DOUGLAS MALDONADO
Quando Carlos Daniel ler a carta que lhe escrevi contando tudo o que aconteceu, é possível que venha atrás de mim pedir esclarecimentos e talvez faça um escândalo.
BRÁULIO
Não sei se acredito que isso é possível, senhor Maldonado. O senhor Carlos Daniel tem uma dívida de 2 milhões de dólares com o senhor, que a outra Paola Bracho emprestou para salvar a fábrica da família.
DOUGLAS MALDONADO
Tenho certeza de que isso pesará no julgamento dele, Bráulio. (Maldonado se levanta e fica de costas para o criado) Mas trata-se de uma questão de honra. Fui amante de sua esposa.
BRÁULIO
O que o senhor pretende fazer agora? Já internou a senhora em um bom hospital, com todas as despesas pagas, e já avisou a família…
DOUGLAS MALDONADO
Não sei, Bráulio. Não sei. Talvez seja melhor nós sairmos do país por um tempo, pelo menos até as coisas se acalmarem. Sabe, Bráulio (Maldonado se volta novamente para o empregado), durante muito tempo eu procurei o amor e fui incapaz de preencher o vazio em meu coração. Até que…
BRÁULIO
Até que a senhora Bracho, sob o nome de Noélia, conquistou o senhor.
DOUGLAS MALDONADO
Não, Bráulio. Não. Paola, ou Noélia, ou qualquer outro nome que venha a usar, foi um erro, uma paixão frívola. Quem realmente me ensinou o que é amar foi a outra, a outra Paola. Nunca a terei em meus braços, mas já não me importo. O que sinto por essa outra Paola (Maldonado torna a se sentar na espreguiçadeira, sem encarar Bráulio) é muito mais próximo de uma ternura, de uma amizade sincera.
BRÁULIO
Que bom que o senhor encontrou uma solução para o seu dilema, senhor Maldonado.
DOUGLAS MALDONADO
O pior é que não encontrei (Maldonado olha para Bráulio). Descobrir que meu coração abriga um outro amor, esse sim impossível.
BRÁULIO
Não estou entendendo, senhor Maldonado. O que quer dizer?
Maldonado se levanta, tenciona dar alguns passos na direção do mordomo, mas hesita.
DOUGLAS MALDONADO
Precisamos deixar o país imediatamente, Bráulio. Prepare tudo, devemos partir o mais rápido possível.
BRÁULIO
Mas é claro, senhor.
Bráulio começa a se retirar e Maldonado fica inquieto. Levanta-se, senta-se, anda de um lado para o outro; Maldonado não consegue conter a aflição. Termina por sentar-se outra vez e afaga a cabeça do cachorro.
DOUGLAS MALDONADO
Não consigo afogar o sentimento que carrego no peito. O que devo fazer? Uma Paola me mostrou o valor de uma amizade, mas com a outra aprendi que não se pode controlar o desejo. O que devo fazer?!
Bráulio retorna à cena, tão aflito quanto Douglas Maldonado.
BRÁULIO
Senhor, temo que não haverá meios de fugir dos seus problemas agora. O senhor Carlos Daniel Bracho está aqui e deseja vê-lo.
DOUGLAS MALDONADO (Ensimesmado) Diga-lhe que não estou.
BRÁULIO
Já lhe disse!
CARLOS DANIEL entra em cena, apressado. Douglas Maldonado levanta-se.
CARLOS DANIEL
Eu sabia que estaria em casa! O que fez com a minha esposa? Ela não era nenhuma santa, mas não precisava devolvê-la praticamente morta! Eu não vou tolerar que, por ter emprestado os 2 milhões de dólares para tirar a fábrica Bracho da ruína, você se enxergue no direito de fazer mal a qualquer membro da minha família.
DOUGLAS MALDONADO
Boa tarde para você também, Carlos Daniel Bracho. Primeiramente, gostaria de perguntar se você sabe em que condições a sua esposa foi parar naquele hospital.
CARLOS DANIEL
Como é que eu vou saber? Você fugiu com ela. Você fez alguma coisa para a ferir, você é o culpado!
BRÁULIO
Senhor Douglas Maldonado, acho melhor eu me retirar.
DOUGLAS MALDONADO
Fique, Bráulio, fique. Preciso de uma testemunha para ouvir o que tenho a dizer agora, e ninguém melhor que o meu empregado mais fiel.
CARLOS DANIEL
Ainda ousa arriscar uma defesa? Você é mais vil do que eu imaginei. Combina perfeitamente com a Paola.
DOUGLAS MALDONADO
Então você sabe, Carlos Daniel, você sabe de todas as maldades e de todas as traições que Paola Bracho fez com você e com sua família debaixo do seu nariz? (Neste momento, Carlos Daniel dá as costas para Douglas Maldonado e aperta a mão num punho cerrado de raiva) Então você sabe que o que a levou àquela cama de hospital nada mais é que fruto da sua iniquidade?
CARLOS DANIEL
De fato, Paola não era uma esposa exemplar. Mas era realmente necessário fazer aquilo com ela? E o que você sabe que eu não sei?
DOUGLAS MALDONADO
O que sei, Carlos Daniel, é que a mulher deitada naquela cama de hospital não é a mesma que veio me pedir dinheiro para salvar os negócios da sua família.
BRÁULIO
Vai contar a ele, senhor Maldonado?
Carlos Daniel se volta para Douglas Maldonado parecendo confuso.
DOUGLAS MALDONADO
Preciso contar, Bráulio. Este pobre homem não tem culpa do que a esposa fez, mas tem a sorte de ter o amor da mulher mais valorosa que já conheci.
CARLOS DANIEL
Você também sabe sobre Paulina Martins?
DOUGLAS MALDONADO
É este então o nome da minha heroína: Paulina Martins. (Douglas Maldonado dá as costas para Carlos Daniel) Foi ela quem me tirou do poço da escuridão, e é a ela que devo a recuperação da minha saúde.
CARLOS DANIEL
Não ouse falar de Paulina!
DOUGLAS MALDONADO (Voltando-se para Carlos Daniel) Quanto a isso não se preocupe, Carlos Daniel. O que sinto por ela é apenas gratidão eterna. Ela me fez ver onde eu estava errando e curou-me as feridas emocionais. Você tem a sorte de ter o amor dessa mulher.
Carlos Daniel dá as costas para Douglas Maldonado, reflexivo.
CARLOS DANIEL
Paulina me ama. Paulina me ama!
DOUGLAS MALDONADO
Ama, Carlos Daniel. E se eu fosse você, tomaria todas as providências para não deixá-la fugir.
Carlos Daniel deixa o recinto apressado enquanto Maldonado e Bráulio observam, surpresos. O milionário volta a sentar-se.
DOUGLAS MALDONADO
Bráulio, tomei uma decisão.
BRÁULIO
Decidiu para onde vamos, senhor?
DOUGLAS MALDONADO
Não, Bráulio. Decidi que não há mais tempo a perder. Você tem sido meu amigo fiel, meu companheiro e confidente. (Maldonado evita encarar Bráulio, levanta-se e caminha alguns passos ao longo da piscina, decidido, mas ainda um tanto inseguro) Bráulio, eu quero que você saiba… Que você saiba que… Bráulio, eu…
BRÁULIO
Está se sentindo bem, senhor Maldonado?
Douglas Maldonado se vira abruptamente, abrindo os braços em uma declaração calorosa.
DOUGLAS MALDONADO
Bráulio, não consigo mais esconder: eu te amo!
BRÁULIO
Mas senhor…
DOUGLAS MALDONADO
Acredite em mim, Bráulio! Há verdade nas minhas palavras. Só você esteve ao meu lado em todos os momentos, viu o que há de melhor e o que há de pior em mim, e pode me julgar com sinceridade. Eu te amo, Bráulio.
Durante alguns segundos nenhum dos dois fala nada. Um JARDINEIRO passa e os cumprimenta. Douglas Maldonado arrisca no assovio alguns poucos acordes de uma antiga e tradicional canção mexicana. Bráulio examina atentamente os próprios sapatos. O jardineiro finalmente vai embora.
BRÁULIO
Senhor, eu entendo que durante todos esses anos em que estive lhe servindo desenvolveu-se entre nós uma certa cumplicidade. Mas não acredito que…
DOUGLAS MALDONADO
Bráulio, não negue! Eu sei que você sente o mesmo, e mesmo que não sinta, você sabe muito bem que faria de tudo para tê-lo ao meu lado, assim como fiz com Paola. (Maldonado dá alguns passos em direção ao criado) O que preciso fazer para que você corresponda ao meu amor, Bráulio?
BRÁULIO
Senhor (Bráulio se afasta o mesmo número de passos que Douglas Maldonado deu em sua direção), não acho que isso seja apropriado…
DOUGLAS MALDONADO
Está decidido! Chame o motorista, estou indo agora mesmo no cartório mudar o meu testamento. Seus anos de serviço serão recompensados, Bráulio. Você vai me amar, você vai aprender a me amar, você vai ver! Mesmo porque todos os meus milhões não serão muito úteis aos meus cachorros, e não tenho mais ninguém a quem deixar todo esse dinheiro.
Bráulio está cabisbaixo, sem conseguir tirar os olhos do gramado e incapaz de encarar o patrão.
BRÁULIO
Senhor Maldonado…
DOUGLAS MALDONADO
Diga, Bráulio, as palavras que quero ouvir!
BRÁULIO (Depois de certa hesitação) Acho que posso aprender a amar o senhor. Quer dizer, não deve ser muito diferente a mecânica da coisa toda. Talvez tenhamos que negociar algumas dessas coisas, mas na maior parte delas nós podemos conviver bem. É, acredito que já estou amando o senhor, senhor Maldonado.
DOUGLAS MALDONADO
Sem formalidades a partir de agora, Bráulio. (Douglas Maldonado se aproxima de Bráulio e segura as mãos dele nas suas) Para você agora sou apenas Douglas.
BRÁULIO
Ah, senhor Maldonado!
Os dois dão um beijo terno enquanto a câmera se afasta lentamente. Corta para os comerciais.
Diz que ontem o Reinaldo Azevedo publicou um texto naquele blog dele e falou não sei o quê do Laerte. Parece que era algo sobre o Laerte mijar em pé ou sentado, não me lembro bem. O Laerte respondeu dizendo que tem tara no Reinaldo, e todo mundo achou genial. Ai, ai, Laerte! Só você, mesmo…
Laerte não nasceu Laerte. Ele se tornou aquilo lá que ele é. Cada vez que ele estremecia arrastando um dedo por uma superfície lisa, ele se tornava um pouquinho mais esse negócio aí. Cada salto em que ele subia, ficava um pouquinho mais perto do objetivo. E aí ele conseguiu esse negócio, que é justamente o tipo de negócio que eu nunca vou conseguir na minha vida toda*.
Laerte estava sendo queer em sua mais autêntica manifestação. O queer, pra quem não sabe, é aquele negócio que foi inventado no início dos anos 90, quando tava todo mundo mais ou menos assim que nem a gente tá hoje: de saco cheio de tanto patinar. Laerte é o cúmulo da obra de arte contemporânea. É pós-moderno até o osso. Ele é a própria obra de arte, e por isso as luzes têm de estar nele. Porque é exatamente isso o que Laerte é, la merde d’artiste.
Interessante pensar nesse cansaço. A gente, que tá aqui na influência do Ocidente, não entende muito bem — principalmente se for de classe média e com curso superior — porque o mundo é assim desse jeito que ele é. Poxa, o mundo de hoje é horrível! O mundo de hoje prometia carro voador e elevador espacial. O mundo de hoje chegou e acontece que a gente ainda tá aqui, brigando com bactéria, porque a vida é exatamente isso: uma grande disputa por energia.
E aí que o Laerte estava no meio dessa disputa por energia — como todos nós — e resolveu que ele precisava de mais. Ele acabou conseguindo, botou um monte de flashes sobre si pra conseguir aquela fotossíntese toda.
Onde eu estava? Ah, sim! No Laerte homenageando Reinaldo Azevedo.
Engraçado quando a gente descobre que alguém tá gamado na gente. Eu acho, pelo menos. Fico muito desconfortável se o negócio não é recíproco, mas teve uma época em que eu achei que tinha que reagir a todo assédio da maneira mais de boinha possível. É um elogio, ora bolas! Você não estava ainda agorinha reclamando que era feia? Tem alguém que gosta de você! Aceita esse cara aí, ó, que é o melhor que você faz.
Reinaldo Azevedo retribuiu. Na tréplica, mandou fotinhas para o Laerte se descabelar. “É o jeitinho dele de mandar nudes”, disse uma amiga que eu não lembro quem é. Olha só que jovenzinho maroto ele era na juventude! Dava mesmo um caldo, não dava?
Dava sim. Tem época em que a gente não pode escolher muito, né?
*Talento artístico. O cara desenha bem pra caramba, não? Você achou que fosse o quê?
Quando eu estava na faculdade, a palavra da moda era “lúdico”. Tudo era, ou tinha que ser, lúdico. Todo projeto levava essa palavra em sua conceituação, todo mundo buscava encaixar o projeto direitinho no que significa ser a ideia que essa combinação de letras quer transmitir.
Confesso que nunca fui atrás de saber o que exatamente significa “lúdico”, ou qual a origem desse termo e em qual idioma essa palavra primeiramente se manifestou. Eu criei na minha cabeça um conceito da palavra baseado nos contextos onde já vi ela sendo usada. Desse modo, lúdico para mim é algo referente à criança, à brincadeira, à lazer e à diversão. Ela diz respeito também à jogo, ou seja: montar um universo particular com regras específicas e viver sob essas regras durante um tempo determinado. Tudo isso pra mim é lúdico*.
Mas na época em que conheci a palavra, apesar de ela parecer significar todas essas coisas, ela era aplicada a coisas que não tinham nada a ver com seu significado. Nada a ver a ponto de causar constrangimento embaraçoso** no boletim do aluno.
Outra palavra que aparece sazonalmente e também é carregada de constrangimentos em seu uso é “brasilidade”. Tinha muita gente usando “brasilidade” nessa época. Nem sabíamos que o Brasil seria sede da Copa do Mundo ainda, mas fazíamos produtos para gringo cheios de brasilidade, fosse lá o que isso significasse. Essa eu nunca fui no dicionário olhar porque tenho a certeza absoluta de que a minha definição é muito melhor que a deles. Brasilidade é um conjunto amorfo de estereótipos sobre o Brasil, unidos pela vontade de agradar e o medo de passar vexame. Ginga, malemolência, samba no pé. Sol, calor, praia, Floresta Amazônica. Capoeira, candomblé, acarajé.
Todas essas coisas não têm qualquer relação com o sul do Brasil (se você desconsiderar o litoral de Santa Catarina, claro). O sulista em geral se orgulha disso, boa parte tem delírios gravíssimos de classe média e se vê como uma etnia injustiçada, e alguns até instalariam eles mesmos o arame farpado para delimitar as novas fronteiras da América Latina. Apesar disso, algumas vezes demonstram que gostariam de ser representados entre os brasileiros. E por vezes, também, acabam vergonhosamente se identificando com os brasileiros em aspectos que repudiam — e é daí que vem a individualidade crônica do sulista***.
O sulista é um sujeito estranho. Ele olha muito à sua volta ao mesmo tempo em que não presta atenção em nada. Ele vive em lugares onde chove a maior parte do ano e ainda não descobriu como faz para usar guarda-chuva nem lidar com toda essa molhaceira. Ele não olha nos olhos de ninguém porque todo mundo parece olhar para ele o tempo todo, e isso o deixa maluco porque é o combustível perfeito para sua paranóia engatilhar (mais) uma crise de auto-estima. O sulista prepara suas cidades para o turismo, mas odeia receber visita. Ele fica o tempo inteiro se indagando se aquela pessoa estava sendo sincera mesmo ou não. Mas o sulista bate no peito e diz: “eu sou assim mesmo!”, e torce para que todos interpretem aquilo como orgulho e superioridade. Todo mundo apenas acha… tosco.
Mas o paranaense é um outro tipo de sulista. Ele é aquele bebê-urso cuja placa de gelo onde estava se desgrudou da placa de gelo da mãe, está sendo arrastado pela correnteza e não sabe muito bem o que fazer agora. O paranaense está ali: no limite entre a brasilidade e a falta de identidade. Se o Paraná pudesse, ele parava o tempo para dar tempo de estabelecer seus próprios limites, mas é tanta gente entrando e saindo desse estado o tempo todo que fica difícil. É por isso que o Paraná fica brincando de ser uma e outra coisa o tempo inteiro e nunca é nada. Assim, de uma maneira bem lúdica.
*Nesse ponto do texto eu parei de escrever e fui ver no Google o significado de “lúdico”. É aquilo que é referente ao jogo, e que se faz pelo prazer de fazer. Acho que não passei muito longe.
**”Constrangimento embaraçoso” é uma hipérbole ou uma redundância?