Patinação

Queria ter escrito alguma coisa ontem mas não consegui. Primeiro porque o tema seria inevitavelmente as tais das manifestações — sei disso porque cheguei a rascunhar um parágrafo e estacionei ali. Segundo porque apesar de ser um exercício, esse negócio de escrever tem que ser feito com um mínimo de prazer, e ontem isso simplesmente não foi possível.

Pois bem. Hoje pelo visto é o dia mais frio do ano até o momento, e daqui pra diante eles serão cada vez mais curtos, úmidos e frios. E não sei mais o que pensar sobre outonos além do fato de que são, pelo menos aqui, irregulares: apesar de a chuva ser mais ou menos constante, o calor fica indo e voltando, e com isso a saúde se esvai e os mofos tomam conta das paredes.

Se falo de clima e tempo é porque não tenho nenhum assunto no momento. Mas falando em mofos e paredes, penso aqui que eu queria ter meus próprios mofos crescendo em paredes só minhas. Aparentemente esse desejo, que é minha única ambição na vida, ainda vai demorar muito pra se realizar. Lembro que quando adolescente minha vontade não era ter um quarto só meu (algo que só consegui ter aos 26 anos de idade), mas uma casa inteira só para mim.

Uma vez que para isso acontecer seria necessário um aumento significativo na minha renda, já perdi as esperanças. E depois de dezoito anos de estudos formais, e sete atuando no mercado, só consigo pensar que todas as vezes em que me vi diante de uma escolha, escolhi errado. A profissão, a pós-graduação, até a roupa que estou vestindo hoje. Não conheço muita gente com o meu perfil para poder fazer alguma comparação e ver mais ou menos o meu progresso na corrida da vida; a maioria dos meus ex-colegas de faculdade tinha condições financeiras muitas ordens de magnitude melhores que as minhas.

Para resumir, eu não sei o que fiz de errado. Não sei nem se estou de fato fazendo algo errado, porque isso pode muito bem ser um reflexo do cenário econômico ou do momento histórico atual, ou de sabe deus de que outras variáveis que se possam considerar aqui. O fato é que tento permanecer sob meu teto atual o mínimo possível e, quando não há outro jeito, tento me alienar o máximo que posso. Não consigo mais suportar a idéia de que posso chegar aos trinta ainda vivendo sob o mesmo teto que minha família e sem ter uma vida própria, com meus horários próprios, com meu próprio ritmo. Não que minha família seja ruim: eles já foram muito piores. Mas eu preciso dessa independência deles pra me sentir minimamente realizada. Quando digo que é minha única ambição na vida, não estou brincando.

Talvez o clima, combinado a hoje ser finalmente dia de pagamento, tenha me feito melancólica hoje. Mas se for para patinar, que o deslize seja ao menos para frente. Cansa um bocado ter azar até quando se tem sorte.


PS: O Google Docs diz que o texto, até antes do acréscimo dessa notinha, tinha exatamente quinhentas palavras. Quando colei aqui no WordPress, ele acusou 498. Acredito que este esclarecimento seja suficiente para preencher a cota.

Reaper Man

Exatamente no dia em que decido que preciso voltar a escrever com frequência sou incumbida da tarefa de escrever sobre Terry Pratchett, em meu primeiro trabalho jornalístico profissional onde produzo texto ao invés de imagem. Foi uma experiência interessante. Já escrevi uma matéria uma vez — e ilustrada, de página inteira —, mas ela está na gaveta há tanto tempo que não tenho muita certeza de que o editor gostou ou está afim de publicar. Soube da morte de Pratchett e fui correndo avisar o editor do caderno de cultura. Não o conheciam, e o editor disse que se eu quisesse escrever alguma coisa tudo bem. Voltei pra minha mesa e vinte minutos depois tinha vomitado um textinho razoável de 3.500 toques.

A morte é um negócio engraçado. Evidente que Morte, o personagem de Discworld, é engraçado, mas no momento estou mesmo falando daquele fato da vida. Ou da não-mais-vida. Eu não sei se sou só eu, mas lido com a morte de uma maneira um tanto estranha. Alguém pode achar que é porque Pratchett não era exatamente uma pessoa presente em minha vida e que conheço a obra dele tem apenas um ano, mas mesmo pela morte de pessoas queridas eu passo meio apática. Tem o choque, claro: “e agora?, essa pessoa maravilhosa não vai mais ser quem ela é, vai sumir da existência, não vai produzir mais nada e, se não tomar cuidado ela vai até esvanecer da nossa memória!”

Meu avô materno, por exemplo. Eu o amava muito, ele era um exímio contador de histórias com aquele jeitão despachado de espanhol que adora falar pelos cotovelos. Morreu em 2007, do coração. Eu o vi deitado no caixão, vi todo o sofrimento dos meus familiares à minha volta, e só consegui me sentir extremamente envergonhada por não conseguir sentir aquela perda. Hoje tenho plena noção de que o mundo ficou bem diferente por causa da ausência dele, mas não consigo não pensar que ele possa estar apenas viajando.

No entanto, se me pego pensando no dia em que minha mãe vai morrer, quase entro em desespero. Só de escrever isso parece que uma bolota de angústia cresceu na garganta e o olho deu uma ardida. Talvez porque tantas vezes a assisti, impotente, sofrer de falta de ar enquanto recusava ajuda médica. Não penso na morte de mais ninguém dessa mesma forma.

Já pensei muito na minha própria morte. Já desejei muito morrer. Mas hoje, há um ano curada da depressão (acho; uma ansiedade do tamanho de um monstro tomou o lugar dela), as única vezes em que realmente temo esse momento é quando, numa rua escura, alguém aperta o passo atrás de mim. Mas não é exatamente um medo de morrer. Mesmo quando quis, não era o medo de morrer que me aterrorizava, era o medo de não dar certo e eu virar um vegetal, algo assim. Em geral não penso muito nisso, porque não tem muito o que pensar. Não dá pra conceber a própria inexistência. Deixar tudo pra trás, pra quem morre, deve ser indiferente. Deve ser bom. De certa forma, a epifania que me tirou do estado depressivo foi mais ou menos isso: “sossega, um dia você vai morrer e nada disso vai importar mais porque nada importa de qualquer jeito, so enjoy the ride“.

Não sei muito bem como terminar esse texto. Já não sabia quando o comecei. Quase como a vida, né?

500 palavras

Hoje terminei de ler o “Backlash” de Susan Faludi literalmente chorando e, no desespero para tirar da cabeça a triste realidade de que em trinta anos nada, absolutamente nada havia mudado — talvez tivesse até mesmo piorado —, levantei da cama com o firme propósito de fazer alguma coisa de produtivo da minha vida já que mudar o mundo sozinha está fora de questão. Rapidamente passou pela minha cabeça a proposta que tinha feito a mim mesma alguns dias antes de escrever pelo menos quinhentas palavras por dia. Entre trabalho, Twitter, estudo e anotações esparsas, é bem provável que eu escreva muito mais que quinhentas; nas épocas mais tenebrosas em que estava às voltas com a dissertação, em algumas ocasiões, consegui bater a meta diária de três mil palavras diárias.

O real problema desse projeto não se trata do ato de escrever propriamente dito, mas de escrever algo substancioso, com alguma ideia que se pudesse futuramente aproveitar, algo com liga. Ainda que escrever não seja exatamente uma ambição que sirva pra me polir o ego — sou muito mais movida por aprender algo novo do que mostrar o que já sei —, escrever é uma atividade que está entre as minhas atribuições profissionais e acadêmicas. Como disse, eu escrevo todos os dias, e muito menos do que deveria. Eu até mesmo edito texto de pessoas que vivem de escrever! No momento, tenho pelo menos três idéias para artigos acadêmicos rodando em segundo plano em minha mente e a única coisa que realmente me impede de levar esses projetos adiante é a absoluta e inevitável frustração que se abate sobre algumas pessoas que recém concluíram uma fase importante de suas vidas. No meu caso, o mestrado.

Escrever, como qualquer habilidade, não é um talento inato. Exige treino, exige técnica, exige conhecer as fórmulas consagradas pra depois, muito depois, se conseguir expandir o próprio conhecimento. E exige disciplina. E é exatamente aí que está o meu problema. Se melhorar a escrita em qualquer nicho exige exercício, ainda que minha escrita tenha amadurecido muito nos últimos anos eu ainda posso melhorar. Todo mundo pode.*

É por isso então que hoje estou oficialmente tirando a poeira do blog. A partir de hoje vou tentar escrever todos os dias (úteis) sobre qualquer coisa, e pelo menos quinhentas palavras. Acredito que se trata de uma meta razoável e muito mais possível de se cumprir que os trinta quilômetros semanais de caminhada a que me propus há algumas semanas e não consegui porque um dia choveu, no outro tinha compromisso, no outro dormi mal**.

Como, entre texto e notas de rodapé, estou quase batendo a meta, acho melhor ir encerrando por aqui. Espere no futuro mais textos neste blog. Só não espere muita coisa deles.


*Até o Raphael Draccon, cujos escritos me lembram os meus próprios aos doze anos, mas que deu um salto bastante significativo em “Cemitério dos Dragões”, apesar de tudo. Isso também pode ter sido mérito do editor.

**Mas fiz dezesseis quilômetros em dois dias. Não querendo me gabar, mas não é pra qualquer um.

Resenha: Até o Fim da Queda

Quando comecei a me embrenhar na produção literária brasileira mais recente e mais voltada a entretenimento — a saber, a Nova Literatura Fantástica Brasileira — também o fiz pelo mesmo motivo de seus entusiastas, o entretenimento. Não havia encontrado nenhum livro bom até agora, mas tenho me divirtido muito lendo esses livrinhos. Uma coisa, no entanto, me deixava com a pulga atrás da orelha: onde estão os dez porcento? Me admirava que, entre tantos escritores se lançando no mercado editorial e querendo avidamente contar suas histórias, por vezes pagando sua publicações do próprio bolso, não pudesse sair coisa boa. Até havia um continho aqui e ali, como alguns poucos que li do Carlos Orsi, mas nada que de fato chamasse a atenção.

Foi então que, há algumas semanas, o Ivan Mizanzuk — que, coincidências dessa vida, fez uma disciplina comigo no PPGTE — me procurou e me presenteou com uma cópia de seu livro, o thriller Até o Fim da Queda, e pediu minha opinião. Após a folga do feriado encontrei o livro em minha mesa no trabalho e iniciei a leitura, sem saber muito o que esperar. Afinal, tratava-se de um cara que, pela pouquíssima convivência que tive com ele, parecia inteligente, publicando por uma editora que pariu pérolas como O Desejo de Lilith. Por um segundo me senti em uma tremenda cilada, mas o desafio estava posto, alea jacta est.


Não veja este vídeo. Sério.

Impossível falar deste livro sem comentar seu design. Em primeiro lugar, preciso parabenizar o Ivan pelo cuidado com o projeto gráfico, que é de autoria dele. Apesar do colofão acusar a presença de seis tipografias diferentes e não pertencentes à mesma família, elas foram muito bem usadas. Há bastante uso de negativo — letras brancas em fundo escuro —, mas o peso e o tamanho das letras foram bem avaliados. Porém, a Draco peca na revisão: vários pequenos erros — typos, palavras grudadas, e pelo menos um caso de uma frase que poderia ter sido reformulada para evitar repetição — escaparam aos olhos dos revisores. Em bem menor grau que a média dos livros da Nova Literatura Fantástica Brasileira, é verdade, mas escaparam.

Precisei comentar sobre a aparência do livro porque esta é uma história que precisa estar impressa em papel para funcionar. Há muito tempo deixei de ler em mídia física em favor dos livros eletrônicos, mas no caso de Até o Fim da Queda, há uma troca interessante entre o meio e a mensagem que provavelmente não funcionaria no Kindle*. Até o Fim da Queda trata de um escritor que se baseia em um caso de suicídio coletivo para escrever um livro e, assim que tal livro atinge notoriedade, outros casos de suicídio começam a ocorrer por todo o país, tendo em comum o fato de se darem após sua leitura. E a narrativa é bastante fragmentada: são vários recortes (notícias de jornal, poemas, transcrições de gravações, gravuras, trechos de entrevistas, cartas antigas etc), que formam o todo; recortes que parecem ter sido juntados quase que deliberadamente. A princípio, achei que não seria uma leitura agradável por causa disso, mas o fato é que a história propriamente dita acontece nos entremeios desses recortes, e é o leitor que vai montando o quebra-cabeças à medida em que lê.

Uma vez acostumada a essa estrutura, a coisa flui. Lá por volta do segundo terço da obra, porém, o autor nos presenteia com uma voadora de dois pés no peito: o capítulo 3 inicia com comentários de portal e encerra com um post do típico blog tosco e pretensioso. Eu juro (juro!) que entendi perfeitamente o que o Ivan pretendia com isso. É bastante óbvio, na verdade: mostrar o efeito que a obra do escritor fictício estava causando nas pessoas, sua reação entre os populares, mas… Precisava mesmo? Há outros momentos onde isso se mostra na história, como na entrevista que o protagonista concede a uma apresentadora de tevê — entrevista que é, certamente, a espinha dorsal da narrativa.

Outra pequena decepção com o livro foi seu final evidente desde o início — ainda que, durante a leitura, se considerem outras possibilidades. Mas o percurso até ele é tão agradável, e o final propriamente dito tão insignificante perto do todo, que esse é o menor dos problemas. Porque é logo depois das últimas páginas que temos algo que é melhor que o desvendamento do mistério principal: o posfácio, que é onde o próprio Ivan reconhece estar entregando o jogo, mostrando as referências visuais, culturais e bibliográficas utilizadas no livro — que, ao contrário do que acreditam alguns dos mais prolíficos autores da Nova Literatura Fantástica Brasileira, não precisam ser jogadas a todo momento na cara do leitor e nem precisam ser patentes**.

Planejado pelo autor e designer curitibano literalmente de capa a capa, talvez Até o Fim da Queda seja uma exceção em um mar de literatura de entretenimento ruim que vem sendo lançada no Brasil nos últimos tempos. Mas pode ser também aquele fiozinho de esperança que faltava para motivar mais escritores de potencial a tentar materializar suas histórias. Pode ser que os dez porcento da Revelação de Sturgeon existam, afinal.


*The Raw Shark Texts, por exemplo, é um livro com uma série de brincadeiras visuais que, apesar de ter sido transposto para formato digital — que foi onde o li — provavelmente fica melhor em papel devido às limitações e falta de liberdade de diagramação dos leitores digitais.

**A palavra “patente” aqui pode ser interpretada da forma que mais convir ao leitor.

2014 em livros

Dois mil e catorze foi o ano em que mais li nos últimos dez anos. Foram 46 livros (e contando). Desde que voltei a ler à sério, em 2010, já passaram pelos meus olhos 118 livros, contabilizando 41.138 páginas segundo o paginômetro do Skoob. Resenho abaixo, em nenhuma ordem especial, as obras que mais me chamaram a atenção neste ano.

The Cyberiad (Stanisław Lem)

cyberiadImagine um livro de contos de fadas em que as histórias são interligadas, quase uma seqüência de episódios. Imagine que, além de ser um livro de contos de fadas a obra seja, ao mesmo tempo, uma ficção científica — hard ou soft?. Este é o Cyberiad, onde os dois personagens principais, os “construtores” Trurl e Klapaucius estão envolvidos em situações absurdas, como construir computadores-poetas, ou uma máquina que capta informações de moléculas gasosas. Publicado originalmente em 1965 pelo escritor polonês Stanisław Lem, este livro foi para mim uma das grandes surpresas de 2014. Diz o Fábio que um dos melhores livros do autor é “Memórias encontradas numa banheira“; vai ser uma das metas de leitura para 2015.

Breakfast of Champions (or: Goodbye Blue Monday) (Kurt Vonnegut)

breakfastQuem me conhece sabe que sou louca por spoilers. São eles que me instigam e me fazem ter interesse por uma história. E Breakfast of Champions começa, em três parágrafos curtos, contando qual será o final do livro. A obra, toda ilustrada por desenhos de canetão feitos pelo próprio autor — com, inclusive, a representação gráfica de um cu — é interessante pela forma em que é narrada: nada aqui é pouco importante, Vonnegut trata cada personagem, cada fato, com uma atenção incrível. Por mais fictícios que sejam os personagens, por vezes você vai ser tão envolvido pelas histórias desses meros coadjuvantes que mal vai se lembrar qual era a trama principal.

Discworld, a série (Terry Pratchett)

discworldEntrei em um vórtice inescapável no TV Tropes. Quando achei que não havia mais esperanças para sair de lá, notei que um nome aparecia com freqüência notável: Terry Pratchett. Saí do Tv Tropes e resolvi dar uma chance, e acabou que descobri uma das melhores série de humor de todos os tempos, o Douglas Adams da Fantasia. Se nada de bom tivesse me acontecido em 2014, o ano já teria valido a pena somente por ter conhecido a série. São, até o momento, 40 livros publicados, e já li um quarto deles. Infelizmente, Pratchett foi diagnosticado com Alzheimer em 2007 e dificilmente poderá dar continuidade ao se trabalho. Uma pena.

The Iron Dream (Norman Spinrad)

irondreamNão consigo me lembrar exatamente como foi que surgiu a vontade de ler este livro, mas é a história alternativa nazista mais louca que eu já li depois de Nazi Literature in The Americas, do Roberto Bolaño — chora, Taranta! Hitler se desentende com o partido e vai embora para os EUA, onde faz carreira como escritor de ficção científica e o Holocausto nunca aconteceu. Seus fãs, no entanto, envergam orgulhosos as fardas da SS nas convenções nerd. Parece absurdo — e é! —, mas não muito distante da realidade: muitos escritores, defendendo absurdos, já foram absolvidos pelos fãs. É uma divertida manifestação literária da Lei de Godwin cheia de homossexualidade reprimida e referências explícitas a falos, aprovada inclusive por neonazistas.

Who Cooked The Last Supper? (Rosalind Miles)

lastsupperÉ fato notório que as mulheres raramente contribuíram para a construção de nossa civilização — e elas deveriam se orgulhar disso! Nesse livro, Rosalind Miles conta como foi que a sociedade se organizava antes do advento do patriarcado, de que modo aconteceu essa transição e que recursos as mulheres usaram para driblar as dificuldades impostas a elas nessa nova organização social. Uma vez que a história de metade do mundo é negada ou posta em segundo plano, ler este livro dá uma real sensação de alívio. As mulheres temos sim uma história, um passado, não somos passivas e temos muita astúcia para sobreviver neste mundo de homens.

A Dialética do Sexo (Shulamith Firestone)

dialeticaQuando achei que mais nenhum livro pudesse ser capaz de me arrebatar em 2014, eis que surge o pedido de uma amiga para transformar um PDF em ePub. Enquanto ia fazendo o cansativo trabalho de transposição, foi me apaixonando pela Shulamith Firestone. Publicado em 1970, quando a autora tinha só 25 anos, engloba uma pá de assuntos sem ser superficial em nenhum deles. Com críticas perspicazes à sociedade, à psiquiatria, à cultura, à maternidade, aos movimentos de esquerda e — pasme! — até mesmo ao design, nada escapa à sua brilhante análise. Não à toa o livro se trata de um marco na teoria feminista: muito do que a autora aborda e critica aplica-se com folga ao século XXI.

Comiquita Sans é sucesso!

Enquanto designers do mundo todo discutiam (e ainda discutem) as mazelas de um mundo habitado por seres intelectualmente inferiores que usam Comic Sans indiscriminadamente, eu estava rabiscando papéis com uma caneta permanente, desenhando letrinhas e selecionando as melhores para um futuro e despretensioso projeto tipográfico. Vetorizei tudo automaticamente com o Inkscape, colei no FontForge, ajeitei mal e mal as métricas, exportei e nascia assim a Comiquita Sans.

Não sei como, onde, em que momento e porquê esta minha fonte fez tanto sucesso, mas é a fonte de mais sucesso até hoje na história das minhas fontes bastardinhas. Só no DaFont, um dos sites onde ela é distribuída e o único onde tenho estatísticas sólidas, até o momento em que escrevo ela teve 75.568 downloads. Por se tratar de uma fonte gratuita de livre distribuição, outros sites a distribuem livremente, então é bem possível que esses números sejam ainda maiores.

A verdade é que a bichinha ganhou o mundo e hoje está presente em jogos, impressos e, claro, histórias em quadrinhos. Duas pessoas tocando pequenos projetos editoriais de HQs e pelo menos três produtoras de jogos já me contataram pedindo permissão para utilizá-la em seus projetos. Entre eles, dois merecem destaque por já estarem prontos, alive and kicking: o jogo Freekscape e a HQ editada pela sueca Natalia Batista, A Song For Elise.

Vez ou outra, alguém vem torcendo o nariz me mostrar usos ruins da fonte projetada por Vincent Connare, esperando que eu concorde efusivamente com sua opinião. E eu respondo: “Ora, eu tenho a minha própria versão da Comic Sans!”, e mando o link da Comiquita. Não que eu ache o projeto da Comic Sans bom ou ruim – ele cumpriu sua função original, quebrando o visual austero que a Times New Roman dava à interface do Microsoft Bob; isso é design, afinal de contas, e design vai além de gosto pessoal.

De alguma forma que desconheço, mas que acho que provavelmente foi o mesmo que ocorreu com a Comic original, a Comiquita vem satisfazendo necessidades de várias pessoas ao redor do globo, a despeito do desleixo de sua criadora em seu projeto, que estava mais preocupada em aprender como usar o software do que com o projeto de uma boa fonte.

Uma leitura crítica

Parece que tudo começou com um post da Fabiane Lima em seu blog, sobre ceticismo e reencarnação. O artigo comentava uma entrevista de Ian Stevenson, se não me engano publicada originalmente em 1972, e deflagrou uma campanha de controvérsia e ataques pessoais à autora (trollagem). Não conheço a Fabiane pessoalmente, sou um dos mais de dois mil seguidores dela no twitter, mas decidi oferecer minhas considerações ao debate.

A discussão se polarizou como uma disputa sobre o caráter científico da reencarnação. Muitos defensores citaram Ian Stevenson como um autor significativo, cujo trabalho se destaca pela aplicação do método científico à investigação de casos de reencarnação, e que as dificuldades da autora em aceitar a teoria da reencarnação eram sintoma de sua “mente fechada”.

Bem, com uma atitude de mente aberta e dentro dos cânones da ciência contemporânea, me propus a analisar um artigo de Ian Stevenson. O artigo é intitulado The phenomenon of claimed memories of previous lives: possible interpretations and importance e foi publicado na revista Medical Hypotheses. Ele pode ser localizado através do site www.sciencedirect.com, e não está disponível para download – mas ele pode ser baixado gratuitamente nas bibliotecas e laboratórios universitários com acesso ao portal de periódicos da Capes. Como artigo publicado em periódico, assinado, ele atende a quase todos os requisitos para ser considerado um trabalho científico, exceto um, como será discutido.

Não estou aqui para defender nenhuma posição religiosa; procurei deixar minha orientação religiosa de lado e analisar o artigo como aquilo que ele é – um artigo científico – com o mesmo rigor e cuidado que eu analisaria um trabalho da minha área. Todos os trechos citados do original o serão em inglês, para evitar que o sentido seja alterado durante a tradução. Tendo em mente essas breves considerações, vamos à análise.

A publicação

Como coisa humana, o mundo científico espelha alguns aspectos de nossa sociedade. As publicações científicas disputam continuamente a atenção dos pesquisadores – boas publicações, com fator de impacto alto, atraem bons artigos científicos, escritos por pesquisadores renomados. Os pesquisadores guardam seus melhores trabalhos para publicação nos melhores periódicos. No Brasil, o sistema Qualis da Capes (qualis.capes.gov.br) ranqueia as publicações nacionais e internacionais, e o Science Direct usa uma medida chamada Impact Factor. A revista Nature, sonho de todo pesquisador, tem fator de impacto 31.434; a Medical Hypotheses tem fator de impacto 1.416 – ou seja, os trabalhos ali publicados não são referenciados com muita frequência.

Dois parágrafos atrás eu escrevi que o artigo atende a quase todos os requisitos para que o trabalho seja considerado científico. O que quero dizer com isso? Bem, o artigo certamente está formatado corretamente: tem um título, está assinado, tem um resumo (abstract), foi redigido no tom correto – com certa impessoalidade –, traz um conjunto de referências bibliográficas; está dividido em introdução, desenvolvimento e discussão, nos moldes de todo artigo científico. Porém, um detalhe na descrição da revista chamou a minha atenção. Do site da editora:

Medical Hypotheses takes a deliberately different approach to review: the editor sees his role as a ‘chooser’, not a ‘changer’, choosing to publish what are judged to be the best papers from those submitted. The Editor sometimes uses external referees to inform his opinion on a paper, but their role is as an information source and the Editor’s choice is final. The papers chosen may contain radical ideas, but may be judged acceptable so long as they are coherent and clearly expressed. The authors’ responsibility for the integrity, precision and accuracy of their work is paramount. (link)

Em outras palavras: a revista onde o artigo foi publicado não submete os trabalhos à revisão pelos pares (peer review); esse processo, não muito diferente do que eu estou fazendo agora, é integral à idéia de ciência contemporânea, e tem dois objetivos primordiais: assegurar a qualidade e a clareza do que está sendo publicado (os revisores, via de regra, mandam comentários para auxiliar o autor na elaboração do artigo), e assegurar que o trabalho tem consistência, checando as teorias do autor contra as posições consensuais da área, o que Thomas Kuhn chamaria de ciência normal. Na minha opinião, ter sido submetido ao crivo da revisão é importante para que um artigo seja considerado científico.

Fontes de dados

Me chamou a atenção, em primeiro lugar, a quantidade de referências que o autor elencou: 66, no total. Dessas, 16 (um quarto do total) são trabalhos do próprio autor; citar excessivamente trabalhos próprios não é, em geral, considerado uma boa prática, e muitas publicações orientam os autores a não fazer isso, até mesmo como garantia de anonimato durante a revisão pelos pares.

O autor parte então dos casos relatados na literatura – muitos deles compilados pelo próprio autor, como se pode verificar nas referências bibliográficas – para defender sua teoria: que as memórias de vidas passadas explicariam fenômenos não explicáveis pela genética ou psicologia. O artigo é curto, com apenas oito páginas. Não se esperaria que o autor descrevesse minuciosamente cada caso relatado, mas se fossem apresentados fragmentos das citadas entrevistas com familiares certamente seria possível interpretação independente. De fato, o autor apresenta toda sua evidência de segunda mão, e dá a entender que nem mesmo o autor teve acesso em primeira mão a todos os relatos originais:

The principal method of investigation is interviews, often repeated, with firsthand informants for both the child’s side of the case and that of the concerned deceased person, if one has been identified. We emphasize independent verification of the child’s statements. Written documents, such as postmortem reports, are always sought, examined, and copied when feasible (STEVENSON 2000, p. 652).

Dessa maneira, é dificultada a interpretação independente dos fatos relatados; obriga-se o leitor a confiar no relato de Stevenson, e no artigo ele não faz menção à confiabilidade dos relatos. Através do Google, é possível localizar e visualizar fragmentos das publicações originais, como os seguintes:

[Sobre o caso Gladys Deacon, que alegava ser a reencarnação de uma menina chamada Margaret Kempthorne] Later, in the 1970s, I attempted to trace records of Margaret Kempthorne, but, as will be seen, I did not succeed. Gladys Deacon’s mother died when she was 18 years old. The woman with whom Gladys Deacon was travelling in 1928 (who would have been a potential witness of the verification of her statements) died some years before I began my inquiries for the case. The case therefore rest entirely on the statements of Gladys Deacon (STEVENSON 2003, p. 52)

[Sobre o caso Katherine Walls] I include this case with some hesitation. This does not arise from the failure to verify the subject’s statements, because I have published other unverified cases and this book includes several others. Nor does it arise because regrettably I have not met the subjet (…) They mainly derive, however, from the acknowledged skill of the subject in conceiving ‘stories’ that she knew were fantasies and in the telling of which her father encouraged her (STEVENSON 2003, p. 59).

São apenas dois casos escolhidos a esmo, mas demonstram falta de cuidado na verificação dos dados e displicência quanto à publicação de informações não verificadas, e contradizem a afirmação do autor na página 652. No caso Gladys, todas as testemunhas e pessoas com quem ela teve contato, inclusive os comerciantes que a contaram a história de Margaret, já haviam falecido à época da entrevista com Stevenson. Pode-se supor que outros relatos de que o autor se apropriou sofram das mesmas inconsistências; mas vou dar o benefício da dúvida e tomar por verificadas as histórias que o autor usa para ilustrar sua hipótese.

Casos médicos “inexplicáveis”

O abstract resume muito bem a teoria que Stevenson apresenta no artigo. A ver:

Several disorders or abnormalities observed in medicine and psychology are not explicable (or not fully explicable) by genetics and environmental influences, either alone or together. These include phobias and philias observed in early infancy, unusual play in childhood, homosexuality, gender identity disorder, a child’s idea of having parents other than its own, differences in temperament manifested soon after birth, unusual birthmarks and their correspondence with wounds on a deceased person, unusual birth defects, and differences (physical and behavioral) between monozygotic twins. The hypothesis of previous lives can contribute to the further understanding of these phenomena (STEVENSON 2000, p. 652)

O autor oferece então explicações para cada um desses assuntos através da hipótese das vidas passadas. Stevenson afirma que 36% dos sujeitos que se lembravam de vidas passadas apresentavam algum tipo de fobia na infância, e que as fobias estariam relacionada à maneira da morte na vida passada:

The phobias nearly always accorded with the mode of death in the claimed previous life. For example, a child who claimed to remember a life that ended in drowning would have a phobia of being immersed in water; one who said it remembered a life with death from a gunshot wound would have a phobia of guns (STEVENSON 2000, p. 653).

Ou não se poderia analisar isso no sentido contrário, e entender que as fantasias ou sonhos das crianças são a expressão de suas fobias? Post hoc ergo propter hoc é uma argumentação traiçoeira. Reduzida ao absurdo, essa explicação nos levaria a dizer que uma criança com medo do escuro seria a reencarnação de outrem que morreu de escuridão? Adiante, um trecho sobre malformações congênitas:

Most of the birth defects do not correspond to any recognized ‘pattern of human malformation’; instead, they correspond to sword cuts, shotgun wounds, or other modes of death (STEVENSON 2000, p. 656).

O autor não expõe imagens dessas malformações, certamente por restrição de espaço. Mas as analogias baseadas em semelhança visual são, também, traiçoeiras. Nós estamos acostumados a reconhecer padrões na natureza, nossos cérebros evoluíram para isso. Se nos predispomos a enxergar padrões, essas associações ficam ainda mais frequentes. Ainda sobre os defeitos congênitos:

For example, one child, born with unilateral brachydactyly of the right hand, said that he remembered the life of a child in another village who had cut off the fingers of his right hand when he accidentally put them between the blades of a fodder-chopping machine (STEVENSON 2000, p. 656).

Sobre esse caso específico, o autor não diz se essa “criança da outra vila que decepou o próprios dedos na máquina” existiu ou não. É um exemplo gráfico, certamente chama a atenção, mas não há, no artigo, informações que suportem a alegação do autor.

Eu poderia continuar desfilando as explicações para o comportamento, rejeição dos pais, marcas de nascença, mas acho desnecessário. Todos os relatos que o autor apresenta são baseados em evidência anedótica e, como visto, não há maior cuidado na coleta de dados e na elaboração das entrevistas, e as relações causais que Stevenson oferece são pouco mais que acidentais.

Uma revolução científica

O artigo de Stevenson é muito bem escrito, e eu recomendo a leitura. O autor expõe seus pontos de vista de maneira clara, tentando demonstrar as relações de causa-e-efeito como mandam os preceitos da ciência contemporânea, o que é louvável; e o texto não é assolado pela confusão e o obscurantismo que tantas vezes afetam os textos “esotéricos”. O assunto é controverso, certamente empolgante, e não é supresa nenhuma que as teorias de reencarnação encontrem resistência na comunidade científica.

Entretanto, o corpo de evidência que o autor apresenta é muito fraco (a displicência na coleta dos dados e a impossibilidade de verificação independente são preocupantes), as relações que ele procura demonstrar são muito tácitas, podendo, sem exceção, ser explicadas pela psicanálise, pela embriologia, pela cultura, pelo imaginário, ou serem meras coincidências.

É claro que existem revoluções científicas de vez em quando, e é claro que, geralmente, novas teorias têm muito trabalho para serem aceitas. Não é suficiente dizer que a ciência oficial é fechada e não aceita as teorias novas; para que as teorias de Stevenson possam “entrar no clube” do pensamento científico, elas precisam passar pelo processo de discussão, angariando defensores e seguidores até que se torne a nova ciência normal, como muito bem nos ensina Kuhn (2007). Mas, ao mesmo tempo em que são necessárias evidências que suportem a nova teoria, ela deve também explicar os fatos que a teoria anterior (oficial, normal, mainstream…) não consegue. Ao meu entender, os problemas apresentados por Stevenson sequer são problemas de pesquisa.

Referências

STEVENSON, I. The phenomenon of claimed memories of previous lives: possible interpretations and importance. Medical Hypotheses, n. 54, p. 652-659.

STEVENSON, I. European cases of the reincarnation type. EUA: McFarland, 2003.

KUHN, T. S. A Estrutura das Revoluções Científicas. 9. Ed. São Paulo: Perspectiva, 2007.


Chico Rasia (@chicorasia), é Arquiteto Urbanista, graduado em 2003 pela Universidade Federal do Paraná – UFPR, e mestrando em Tecnologia pelo Programa de Pós-Graduação em Tecnologia da UTFPR.