Faz muito tempo resolvi que precisava escrever a respeito do método que ando usando para produzir alguns de meus textos, principalmente os mais “sérios” e acadêmicos. Mas sentia que precisava também expressar minha percepção a respeito do processo de escrever e do que significa escrever hoje.
As palavras sempre foram minha paixão, em todas as suas formas e manifestações. Não foi através do desenho, mas da caligrafia que afinei minha coordenação motora fina. Tipografia foi — junto com Projeto Editorial e Design da Informação — minha disciplina favorita na faculdade de Design Gráfico. Através da web, pude dar vida a alguns projetos literalmente usando palavras escritas para fazer as coisas acontecerem, quase um tipo de mágica. Transmitir e abstrair informações em símbolos gráficos é uma das coisas que mais gostei de fazer profissionalmente, e sempre lembro com saudade de alguns dos projetos em que trabalhei na Gazeta do Povo [1], lamentando somente não ter tido na época a saúde mental necessária para aguentar aquele tranco. Lidar com palavras é o meu ofício. Minha mídia, de uma forma ou de outra, é mesmo o texto.
Quando descobri a existência do markdown [2], achei a coisa mais sensacional dos últimos tempos em termos de padrão e linguagem aberta. O markdown é um conjunto de convenções que formatam texto, e a coisa fica humanamente legível, editável e simples até mesmo quando em texto puro, quando o conteúdo não se adapta a algum tipo de formatação que aplique suas marcações.
Junte-se a isso a Motorola ter liberado uma atualização que permite dividir a tela e usar dois softwares ao mesmo tempo [3], três se você incluir o teclado — e, de repente, notei que todas as dificuldades que eu tinha para escrever haviam sido removidas. Podia treinar a escrita e estudar idiomas traduzindo textos que lia em uma janela e escrevia em outra, no meu celular, na palma da minha mão, em qualquer lugar em que eu estivesse. Minha antiga-atual-futura ocupação e meus interesses de pesquisa exigem a habilidade de escrever, eu não tinha mais desculpas para não produzir.
É possível que o Google escute cada uma das palavras que eu diga ao escrever ditando texto com a ferramenta de transcrição e microfone do celular, mas isso é uma discussão para outro texto — e me lembra que basicamente tudo o que escrevo, o faço usando algum software Google ou Apple. Mas é muito mais fácil, conveniente e ágil que o método anterior (carregar por aí um teclado bluetooth ou mesmo escrever no papel), não apenas pela questão do hardware (o tecladinho até que é bem confortável), mas porque me debatia demais com o próprio processo de escrever (a digitação acabou melhorando muito depois que fui trabalhar como dev). Ao mesmo tempo, esse processo me fazia perder raciocínios importantes por não ter um registro imediato do que me passava pela cabeça, e também por depender de um equipamento a ser usado em conjunto com celular.
Já escrevi textos bastante grandes usando somente o teclado do Android no modo em que se desenham as palavras sobre ele, em vez de digitar letra a letra. Mas qualquer um que tenha usado um SwiftKey da vida pode imaginar que não parece muito produtivo escrever textos acima dos três mil caracteres usando essas ferramentas. Ditar palavras no microfone integrado do teclado do Android torna escrever muito mais fácil e rápido que até mesmo os digitadores mais ágeis. O microfone capta palavras bem o suficiente até quando há som ambiente, gente conversando ou TV ligada em volta. Com fones de ouvido, ou mesmo sem eles, é possível registrar pensamentos em forma de palavras confortavelmente em qualquer lugar em que seja possível usar um telefone celular, ninguém vai te chamar de maluco [4], e nem precisa falar alto para ser compreendido.
Obviamente que entender plenamente o que dizemos ainda é um problema dessa ferramenta, mas tenho feito experiências interessantes. Ainda que por vezes eu me sinta a própria Larissa do 90 day fiancé, até o meu inglês ruim ele entende — se conseguir pronunciar direitinho, claro. O interessante é que, ao mesmo tempo em que consigo fazer meus fichamentos, posso transcrever uma citação em inglês concomitante ao treino da pronúncia do idioma [5]. Algumas vezes ele se confunde, porque há três idiomas configurados em meu teclado, e muitas das interpretações de minha fala são bastante engraçadas. No entanto, se se falar de forma bem articulada, ainda que numa velocidade rápida, é bem possível que ele entenda quase tudo bem certinho. E aí só falta pontuar e marcar ênfases, links e títulos com markdown, coisa que costumo fazer a cada frase completa.
Ainda escrevo com caneta e papel em alguns contextos específicos, mas o faço principalmente nas escrituras mais pessoais ou mais artísticas. A caligrafia e a escrita à mão ainda são uma forma de expressão importantes para mim, mas dependem de um certo estado de espírito. E, mais importante, elas não necessariamente possuem a agilidade que o tipo de escrita e registro que quero desenvolver exige.
O texto escrito adquiriu formas, funções e se desenvolveu em gêneros os mais variados ao longo de sua história. Os limites da sua materialidade servem também para lhe caracterizar diretamente dentro de sua própria produção. No caso dos meus textos, não é que eles tenham aumentado em tamanho e densidade depois que comecei a usar essa técnica, mas produzir textos com densidade e complexidade tem se tornado muito mais fácil e factível. Além disso, editar conteúdo me parece hoje muito mais prazeiroso, mesmo quando envolve ter que usar um computador propriamente dito. Quando escrever envolvia me sentar diante de uma máquina em uma cadeira dura, catando milho ainda que no teclado mais confortável de que tenho notícia e/ou dependia da saúde dos músculos de minha mão direita — sofrida com o uso do mouse —, qualquer preguicinha era uma boa desculpa para não escrever. Agora, é mais uma promessa de ano novo que cumpro sem exatamente ter perseguido diretamente a meta.
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Futuramente, pretendo escrever sobre design editorial para web, mais especificamente o percurso de desenvolvimento do formato de blogazine — os amigos-leitores mais antigos desse blog vão se lembrar — para os editores de conteúdo rico como o editor do Medium e o Gutenberg, agora plenamente integrado ao WordPress.
Notas
[1] Sim, aquela Gazeta do Povo.
[2] Sobre markdown, na Wikipédia se diz que é uma linguagem que converte facilmente para HTML, mas a verdade é que com o uso de expressões regulares, dá para converter em qualquer formato. O novo editor de texto do WordPress está plenamente adaptado ao uso de markdown, mas é bom escrever diretamente em um editor de texto puro ou copiar sem formatação para ele entender e aplicar a marcação como formatação, e não a formatação do editor como formatação.
[3] A empolgação de quem acompanhou o lançamento das interfaces gráficas com janelas deve ter sido semelhante.
[4] Pode acreditar, já tentei sair por aí com um caderninho a postos para escrever qualquer coisa que me desse na telha a hora que eu bem quisesse, e sempre tinha alguém para me olhar estranho.
[5] Isso é que é eficiência no aprendizado, mermão. Melhor que isso, só chupando cana e assoviando ao mesmo tempo.
Variedades de amizade feminina: a freira como mulher fácil/livre
RAYMOND, Janice. A Passion for Friends: toward a philosophy of female affection. Melbourne: Spinifex Press, 2001.
Nesse capítulo Janice Raymond usa o exemplo das freiras e da vida comunitária no convento para exemplificar a riqueza da vida entre companhias femininas e os ataques dos homens à sua independência. A autora usa, inclusive, a sua própria experiência pessoal como freira para tratar esse exemplo.
Ela inicia falando dos ataques da Reforma Protestante às ordens monásticas e, principalmente, às ordens de mulheres. A própria existência de mulheres vivendo separadas de homens e trabalhando em atividades intelectuais na época negadas às mulheres já as caracterizavam como “perdidas” pelos seus críticos, tanto católicos quanto protestantes. Mas foi a crítica protestante que transformou a virgem na prostituta, uma vez que, na sua visão, qualquer mulher independente de marido era imoral.
Com o advento do cristianismo, muitas mulheres perderam o seu prestígio social, intelectual e político, de modo que o convento se tornou um refúgio para muitas delas. Essas mulheres buscavam independência e oportunidades que eram negadas para a maior parte das pessoas da época.
The nun carried on the tradition of the loose woman, that is, the independent woman associated with a pagan and ungodly period. Therefore, female autonomy and detachment from men were regarded as pagan and ungodly. The male hierarchy was always in conflict with the independent spirit which had draw many women to convent living initially.
Para frear essa liberdade inconveniente, obviamente a igreja católica tentou circunscrever a atuação dessas mulheres dentro de suas próprias regras. Como exemplo das tentativas da igreja de cercear ordens de mulheres, autora vai falar do movimento Beguine, um movimento religioso cristão independente das hierarquias católicas que buscava inclusive a discussão e o conhecimento teológico, de modo que não ficasse restrito aos clérigos. Ainda que a perseguição tenha sido pesada e que bispos tenham acusado o movimento de agregar mulheres fugindo dos laços maritais, a ordem só foi completamente dissolvida no século XV.
Raymond então vai investigar as origens das associações da definição do termo “freira” com o significado “cortesã”. Ela então cita alguns casos em que mulheres foram levadas a vida em convento como forma de corrigir seu comportamento. Sem querer, segundo autora, a igreja católica teria dado as condições para o surgimento de uma hetairocracia — lembrando aqui que o termo vem de hetaira, que significa “prostituta” ou “companheira”, conforme discutido no capítulo anterior. A autora vai chamar o hetairismo de “Regra da companheiras” (The Rule of companions), uma noção espiritual de amizade que expande os limites da afetividade, atuando diretamente na vida das mulheres.
The convent is also a primary locus for long-term institutionalization of female friendship under the aegis of sisterhood, a situation in which women spent their lives primarily with other women, gave to womrn the largest of their energy and attention, and formed powerful affective ties to each other — so powerful that this Gyn/affection became effective in the world outside the convent.
Desde que se estabeleceram os primeiros conventos, os clérigos homens tentaram definir os limites da vida dessas mulheres, acusadas de tentar “usurpar as prerrogativas dos homens”. Essas mulheres, no entanto, estavam buscando retomar as prerrogativas das mulheres que vieram antes delas. Ainda que os estudiosos do assunto tenham classificado essas mulheres como “privadas de homens” por causa de desenvolvimentos históricos da época como as cruzadas, e que esse teria sido um dos motivos para a busca por uma vida monástica, esse retrato do assunto falha ao se deparar com o fato de que esses conventos eram poucos em número e que não supriam a demanda das mulheres que buscavam por essas ordens. Algumas ordens, como as próprias Beguine, talvez tenham surgido justamente porque essas mulheres não conseguiam vagas nos conventos que existiam, e porque os homens relutavam em abrir novos conventos para mulheres.
Além da fuga de uma vida marital ingrata, a autora destaca que a vida no convento oferecia às mulheres uma vida de educação intelectual que nem mesmo as mulheres nobres nem o homem médio tinham acesso. Nessas instituições, mulheres mais velhas podiam ensinar mulheres mais novas na companhia de suas iguais, criando uma tradição própria. Assim, essas mulheres eram atraídas para vida no convento por seus próprios motivos, e não por uma diferença numérica entre a população de homens e mulheres e pela consequente impossibilidade de se casarem.
Nos primeiros conventos, a maior parte das mulheres eram de classes mais altas. Com o tempo, mulheres de classe baixas também foram atraídas para a vida monástica. Nesses lugares elas podiam estudar artes, literatura, produzir livros e manuscritos. Nessa época esses conventos não eram isolados ou um lugar reservado à meditação. Porém, essas atividades mais tarde foram restritas aos monastérios de homens ou transferidas para artesãos laicos, fora da comunidade monástica.
“[…] It was a busy and active unit of society with its own economy and definitely an outward thrust of service to the community”. It was a context in which women could do great things. It was a community of spiritual friends.
Adiante no texto, a autora vai tratar das variantes de amizade, iniciando pelo que ela chama de “amizade espiritual”. Aqui ela vai começar tratando de como a própria tradição cristã (principalmente através de autores homens) enxerga a amizade. A atitude geral desses autores em relação a amizade é que trata-se de uma virtude cristã, mas que não se deve se apegar a nada nem a ninguém, uma vez que deus deve ser o centro do apego do cristão. Mas ela vai destacar um autor em particular — Aelred de Rievaulx —, que escreveu um tratado chamado, justamente, Amizade Espiritual. Nesse texto, o autor vai tratar da amizade como uma expressão do próprio amor de deus. Esse autor, no entanto, vai exortar as pessoas a manter a pureza de suas intenções e discrição na intimidade, evitando que as amizades se tornem “carnais”.
Já as “amizades particulares”, das quais Raymond trata a seguir, não eram bem vistas pelas comunidades. Havia na época exortações contundentes para que as irmãs não se apegassem muito umas às outras. Essas acusações contra as amizades particulares caíam em duas categorias. A primeira era a ofensa contra as virtudes da caridade, uma vez que se acreditava que a amizade particular era baseada em motivos puramente naturais, sentimentais ou até sensuais. A segunda forma de acusação contra esse tipo de amizade é que elas violavam o voto de castidade, que no contexto dessas comunidades também inclui evitar intimidade com pessoas do mesmo sexo. As noviças eram admoestados contra a possibilidade (latente ou não) da homossexualidade. A preocupação com homossexualidade fez com que alguns conselheiros da época achassem mais perigoso que os monges caíssem em tentação por outros monges do que por uma mulher.
Janice Raymond fala de sua própria experiência ao ser censurada em uma amizade particular:
My own experience of being censured for forming a particular friendship was an outgrowth of a walk in the woods with another novice during the course of a rare “free day”, that is, a day on which convent duties and obligations were reduced to allow free time for prayer, study and walks out of doors. We had interrupted our walk to sit down on a large boulder, at which point we admired the trees coming into spring life, spoke about our common passion for writing and its relationship to spiritual life, and briefly — in the ecstasy of being at one with God, the cosmos, and each other — held hands! One of our peers, who evidently saw us engaged in this rather innocuous act of “pressing the flesh”, felt it her spiritual duty to report us. That evening, in the refectory, we were both publicly chastised and berated for endangering these rare days of freedom for the rest of our sisters because we had passed the boundaries of permissibility. In private, after the public exposure, my companion was browbeaten by the novice mistress into “confessing” her “illicit affection” for me. The novice mistress attempted to elicit a similar confession from me, but I was not to be intimidated by her representation of our holding hands as simulation of intercourse! For this willfulness I was told that “pride goeth before the fall”. My friend, who was traumatized by the censoring and the innuendos of abnormality, inwardly confused about her own feelings, and certainly not helped by my own disdainful judgment that she had allowed herself to be overwhelmed by the novice mistress, left the community a year later.
A Reforma Protestante e sua Contra-Reforma católica ajudaram a suprimir as ordens religiosas de mulheres. A dissolução dos mosteiros que se seguiu pressionou várias ex-freiras a se casarem e se encaixarem nos “novos” valores religiosos. Uma vez que a “purificação” geralmente se dá através da remoção do poder das mãos das mulheres, os homens da igreja católica se viam fazendo o trabalho de deus ao remover as mulheres das posições de autoridade ou submetendo seu poder a uma esfera mais alta. Uma das medidas para que isso acontecesse foi a exigência do enclausuramento, impedindo que essas mulheres tivessem atividades no mundo exterior e exigindo que usassem uma vestimenta própria que restringia seus movimentos.
The wearing of a distinctive habit of clothing was imposed on nuns, greatly restricting their physical mobility. The habit usually enshrouded their bodies and became a kind of clothing cloyster that encumbered all sorts of physical activities. Men were not required to wear the awkward uncomfortable headgear that enclosed minds for centuries. This headpiece was rationalized as fulfilling Paul’s injunction that women should keep their heads covered, especially in church, so as not to distract or seduce (presumably men).
Cada vez mais essa restrição às mulheres foi crescendo nas ordens, de forma prática e simbólica. Nos conventos onde coexistiam no mesmo local homens e mulheres, passou-se a exigir que as mulheres preparassem as roupas e as refeições dos homens. Principalmente durante os séculos XIV e XV, os conventos perderam a sua função intelectual e suas atividades se voltaram à domesticidade.
The rule of enclosure cloistered more than the physical space and mobility of religious women. It also circumscribed their minds.
Foi crescente nessa época também o aumento das invasões literais nessas comunidades de mulheres. Assim, essas mulheres eram alvos de ataques violentos e não podiam contar com qualquer proteção das autoridades religiosas de um lado, e de outro, as próprias autoridades religiosas as forçavam a se submeter às suas reformas e contra-reformas. Muitas comunidades de mulheres acabaram aceitando o isolamento proposto pelas autoridades católicas na tentativa de se protegerem dessas invasões.
Os reformistas protestantes, por sua vez, retratavam as mulheres nessas ordens religiosas como degeneradas e corrompidas, e os conventos como locais de promiscuidade e imoralidade, onde mulheres tinham relações heterossexuais, engravidavam, pariam, matavam e enterravam seus bebês sem serem notadas — como atestam algumas das instruções para inspeções nesses lugares. Para eles, a virtude da mulher só era possível enquanto esposa e mãe, sendo o casamento a escada que leva ao alcance de deus. Dessa forma, eles igualavam o voto de castidade à prostituição e os conventos aos bordéis. Acusavam os monastérios injustamente e obrigavam que se dissolvessem, de modo que as mulheres que não se conformassem com uma vida comum no casamento sofriam pressões de todos os lados.
What happened to the nuns who were “freed”? Those who took dispensations were given a small sum of money to tide them over until they presumably “settled down” and got married. Many women were simply “set free” to drift and fend for themselves. These women had led secluded lives and were discharged into a world where they would never really belong. Henceforth, they were obviously endangered. And, once again, the Church — this time Protestant — created the very class of loose women against which it inveighed.
Janice Reymond conclui esse capítulo ressaltando que, apesar da aura opressora dos conventos, eles proviam a essas mulheres uma comunidade sólida e estável, onde elas podiam trabalhar, escrever, ensinar ou se envolver na comunidade, florescendo de formas poucas vezes possível na história das mulheres. Muitas coisas triviais eram providas por essas instituições, ainda que essa ordem fosse enfatizada em detrimento da independência das mulheres. Ela acrescenta que, no feminismo, essa estrutura não existe:
Many early feminist institutions, women’s centers, and business were short-lived because there were no guiding principles of organization. Disagreements often escalated into divisiveness that undid many attempts to create feminist institutions.
A autora destaca que uma lição crucial a ser apreendida na história das mulheres em geral e dessas mulheres religiosas em particular é que a ordem de uma comunidade de mulheres deve ser gerada e estabelecida internamente, de acordo com os propósitos dessas mulheres, e não pode ser imposta de fora por autoridades masculinas. Uma vez que essa ordem foge disso, ela cria uma tensão entre individualidade e comunidade que suprime a privacidade dos indivíduos, transformando a comunidade numa entidade que busca moldar opiniões e regular a vida das suas membros.
Então, a autora fala a respeito de afeto “desordenado” e “não centralizado”, que acaba por transformar as mulheres em relacionadoras profissionais, o tempo todo imersas em relações e relacionamentos como o foco de suas vidas, sem no entanto a construção de uma intimidade verdadeira com alguém, sejam homens ou mulheres.
Raymond defende que o tipo de intimidade que se desenvolve em uma “amizade particular” não é algo pronto e que pode ser encontrado em qualquer lugar. Esse tipo de intimidade precisa ser desenvolvido com carinho, respeito, ternura, e não surge de uma hora para outra, e que essas amizades íntimas são “posses altamente frágeis” que necessitam estar aliadas a outras formas de vida (emocional, intelectual, social e espiritual) para sobreviver.
Ela encerra esse capítulo com este belo parágrafo:
In the final analysis, the power of female friendship in convents derive from the fact that friendship is by nature a spiritual communion, but women are not and never will be pure spirits. With nuns, as with all women, friendship is mediated through and only becomes Gyn/affective on the material world.
Origens da amizade feminina: no princípio havia a mulher
RAYMOND, Janice. A Passion for Friends: toward a philosophy of female affection. Melbourne: Spinifex Press, 2001.
O primeiro capítulo do livro começa com uma retomada da visão geral masculina a respeito das relações entre mulheres. Ou melhor, começa com justamente a negação de uma possibilidade desse tipo de relação, uma vez que a versão dos estudiosos homens é uma versão centrada na hétero-realidade. Essa visão enxerga a mulher como um ser que existe para remediar a solitude masculina, conforme o Gênesis, e como um papel de apoio das produções culturais masculinas. Assim, a mulher existe uma vez que o homem tenha aceitado o seu papel evolucionário de “iniciador sexual” (fucker). É na hetero-relação entre homens e mulheres que a mulher ganha significado.
[…] not only woman but her entire affective existence was called forth by men. Therefore, man has been and always will be her destiny. For women, the original love affair is between a man and a woman. The natural relationship that men have prescribed for women is woman for man.
Em seguida, Raymond vai fazer uma retomada das formas como as mulheres constroem relações entre si. Ela inicia falando que uma genealogia das amizades das mulheres deve apontar para uma prioridade de mulheres por mulheres. Ela dá alguns exemplos a respeito de como essa prioridade acontece — como, por exemplo, os clubes de mulheres negras do século XIX, e as mulheres que chegam em altas posições em departamentos acadêmicos e preparam sucessoras de seus trabalhos —, e afirma que amizade entre mulheres acontece na liberdade delas poderem exercerem a sua prioridade por outras mulheres.
Depois, a autora destrincha alguns significados do termo cultura e aponta para uma cultura de mulheres — uma cultura que não está fixa em nenhum estado original estático. Trata-se de uma cultura das mulheres enquanto cultivadoras da sociedade; e aqui cultura é usado no seu significado corrente de “produção material, intelectual e espiritual da vida”. Nessa parte, ela faz uma nota de rodapé interessante:
Women’s culture has not been valued or extolled as have many ethnic and racial cultural traditions. Recent feminist attempts to do so have often met with the demeaning of what has come to be called “cultural feminism”.
Ela continua dizendo que uma das formas de se subjulgar um grupo particular de pessoas é destruindo as suas tradições culturais, o que geralmente envolve violência e a obliteração dos símbolos e das histórias, num processo de longo prazo em que esse apagamento é feito progressivamente.
One way in which men have distorted and dismembered woman’s origins with each other is by institutionalizing a system of primogeniture in which not only is the firstborn son considered recognized and rewarded heir to the kingdom of the father, but the father-son relationship itself is shored up as the model for important relations between men. Patriarchal primogeniture is a strategy for bolstering the traditions of homo-relations in which all sorts of father’s bequeath to all sorts of sons the keys to their kingdoms. Patriarchal primogeniture renders invisible not only firstborn daughters but the mother-daughter relationship as well. This potentially Gyn/affective bond is deprived of its power to serve as an archetype for a succession of women’s affinities with women. Instead, women are taught to disavow their affection for women. Disowned love for women is like disinherited daughters. Only men become the recognized and rewarded beneficiaries of female affection.
Raymond aponta que é na amizade entre mulheres que o feminismo encontra a sua vitalidade e radicalidade: um dos principais objetivos do movimento não é apenas melhorar as relações entre homens e mulheres, mas unir mulheres. Porque, para além de uma comunalidade de opressão, as mulheres têm uma ancestralidade comum de sobrevivência e força partilhada, e tem servido de âncoras umas para as outras ao longo da história.
Alguns exemplos são usados para trazer à tona essa união pela comunalidade de experiências entre mulheres em situações adversas. Um desses exemplos é a relação entre quatro irmãs presas em Auschwitz. Outro exemplo é do livro A Cor Púrpura, onde uma irmã intervém pela outra numa tentativa de abuso por parte do pai de ambas.
A autora conceitua então a mulher original. Segundo ela, não se trata de uma mulher original no sentido histórico, biológico ou ontológico, mas no sentido de que as mulheres criam e constantemente desenvolvem a sua própria originalidade. A mulher original seria o contrário da mulher fabricada pelos homens, domesticada para servir aos seus propósitos.
The social construction of reality has been “caused” by men who see themselves as bringing female life and love into existence. The power of men to originate all things has been a primary act of patri-genesis that has resulted in man naming himself as the creator of woman’s affections, which he has then grounded in himself. To do this, men has had to fabricate his own myths of female origins and his own creation stories. […] man’s creation of woman was hardly creative. It was disintegrative, that is, it disintegrated woman’s original Selfhood and women’s origins with other women.
Para traçar essa história das amizades femininas, Raymond vai usar o método de Foucault. O foco desse método é tratar a história como uma história de descontinuidades. Mas ela vai usar esse método de forma bastante crítica. Ela diz que, “abstratamente”, a forma de historiografia e meta-história desenvolvidas no trabalho de Michel Foucault é bastante útil para as acadêmicas feministas que estão em busca de uma construção de uma história das mulheres. Isso porque a própria história das mulheres, e mesmo o nosso presente é repleto dessas descontinuidades apontadas por ele. O problema é que o próprio trabalho do Foucault, principalmente tratando de pornografia e sexualidade, buscava uma “transgressão” que simplesmente repete toda a história de violência e degradação que as mulheres sempre conheceram.
It must be understood that “the overwhelming, the unspeakable… thrills, stupefaction, ecstasy, dumbness, pure violence, wordless gestures” were all accomplished over the degraded, mutilated, and often dead bodies of women who, without doubt, were overwhelmed, inarticulate, stupefied and made dumb.
Here we have fetishism as philosophy, pretending to expand inner human vision in the limits of transgression. Foucault would have us believe that an egg in a toilet is a profound symbol of transgression representing “our” inner experience. Never is it asked whose inner vision or whose limits are transgressed. His eye is most certainly not hers.
Daí a autora segue para análise das disciplinas que buscam entender a psique humana e que ajudaram a construir a ideia da heterossexualidade feminina. Obviamente, ela vai começar questionando as ideias de Freud e do complexo de Édipo, contrapondo-as com as de outras autoras feministas. Ela começa usando a interpretação de Dorothy Dinnerstein, de que dar-se conta de que é fêmea é estar destinada a “competir com outras mulheres pelos recursos eróticos dos homens”, ao mesmo tempo que nega a mãe/mulher, seu primeiro amor. Raymond afirma que essa autora coloca a ênfase na ausência de relações entre as mulheres e não na presença dessa relação.
Depois ela vai analisar a interpretação da Nancy Chodorow, que vê as mulheres em uma espécie de triângulo amoroso entre o amor original da mãe e a guerra constante entre mulheres pela atenção dos homens. Ao mesmo tempo, os homens não estão física ou emocionalmente disponíveis para as mulheres como suas mães estariam — ou como as mulheres estão para os homens. Uma coisa interessante que ela vai apontar no trabalho da Chodorow é a ideia de que o aparente romantismo das mulheres em relação às suas relações com homens está fundado racionalmente em uma ideia muito clara de sua dependência econômica em relação a eles.
Raymond vai questionar no trabalho da Chodorow principalmente o pressuposto de que as mulheres são inatamente heterossexuais. Primeiro porque essa assunção é contradita pelo próprio trabalho da autora: se a heterossexualidade é tão natural assim, por que é preciso tantos mecanismos de reforço, tanta restrição e tanta regra para manter as mulheres na linha?
Ela então fecha essa parte apontando que tanto o trabalho da Chodorow quanto o da Dinnerstein apresentam como solução uma participação maior dos homens na criação dos filhos. Para Raymond, isso é colocar nas mulheres a responsabilidade de transformar os homens em mães — “women must mother men to be mothers, for if women do not do so, who will?” Ela ironiza que a proposta dessas duas autoras é a mesma de filmes de comédia romântica da época, que mostravam homens como pais presentes, humanizados, cuidadores, o contrário das mães, frias ou ausentes, que saíram de casa em busca de seus “verdadeiros eus”. Ela diz que nenhuma dessas autoras mostra de onde esse homem salvador vai vir.
O próximo tema que ela aborda são as justificativas biológicas para a relação inevitável entre homens e mulheres. Raymond afirma que um dos principais argumentos nesse sentido é o de que o pênis “encaixa” na vagina. Ela demonstra com alguns exemplos que o que geralmente é tido como uma relação natural geralmente vem acompanhada de dor e trauma, e que a insatisfação sexual das mulheres em relações hétero é um dado bastante bem documentado e conhecido.
Outro argumento que justifica essa relação inevitável é o da reprodução, uma vez que o sexo heterossexual pode produzir novos seres humanos. Ela argumenta que mesmo as formas artificiais de se produzir seres humanos funcionam socialmente dentro da lógica do casamento e das relações heterossexuais. Essa naturalização tem mais haver com a manutenção de uma norma e modelo de relacionamento do que uma preocupação real com reprodução.
Daí ela vai para as formas coercitivas de produção das hetero-relações. A autora vai listar as proibições ao aborto, a maternidade compulsória, a clitoridectomia e a ooforectomia como tentativas de controle da sexualidade feminina que atestam que essa posição das mulheres é forçosamente promovida. A naturalização do estupro como um extravasamento natural da sexualidade masculina — que não existiria caso as mulheres se submetessem, nessa visão — é também usada como argumento para legitimar a existência e a legalização da prostituição.
What is important for our analysis of Gyn/affection is that it takes an enormous amount of coercive activity to create the so-called natural woman who is ever ready to satisfy in the natural man. In fact, what the natural man constantly requires is the “unnatural woman,” the woman who is man-made. To become man-made natural women, that is, unnatural women, women have to break with their originality and their origins with their original Selves and other women. This rupture, symbolized in the act of heterosexual intercourse and in all the disjunctions of hetero-relations, tears the young woman out of an original and potentially future world of women and throws her into the world of men.
Essa entrada no mundo dos homens geralmente se dá a partir da adolescência. Nessa idade, as mulheres geralmente saem dos seus convívios com professoras, amigas e mães, e toda a sua afeição e vida social voltada a mulheres acaba. Mas ainda que existam tantos obstáculos, é às vezes no “mundo natural” que as mulheres vão buscar a sua independência e transcendência.
Essa busca por uma mulher selvagem é muitas vezes confundida com promiscuidade sexual, uma vez que, para os homens, qualquer mulher livre e independente é uma “mulher fácil” (“loose woman“, no original). A atração dos homens pela virgindade das mulheres é justamente porque se trata de uma mulher fresca, a ser domada, recém-saída do mundo das mulheres. A mulher que envelhece sem ser tomada por um homem permanece tempo demais no mundo das mulheres e é, portanto, rejeitada no mundo dos homens. Uma mulher que vive independente dos homens e cujo contato com eles é apenas incidental, mas tem no centro do seu convívio as mulheres, é uma perspectiva assustadora para os homens.
Any woman-identified and autonomous woman, but especially one who has lived a long life time and the world’s of woman is perceived as not only spoiled for men but as spoiling other women for men. Gyn/affection is contagious.
O item seguinte desse capítulo busca fazer uma genealogia dessa “mulher fácil”. A mulher fácil é aquela que não está atrelada a ninguém. O problema de estar “livre” em um contexto de dominação masculina é que a mulher está livre das proteções patriarcais e também da reputação que ele confere. O simples fato de não estar atrelada a nenhum homem faz com que as mulheres sejam rotulados como prostitutas.
Raymond faze então uma genealogia do termo hetaira, que no grego originalmente significava “companheira”. Com o tempo, esse termo passou a designar a companhia sexual do homem, ou ainda, prostituta. O caminho que esse termo percorreu de um significado ao outro é um exemplo de como a dominação masculina define as mulheres igualmente em termos da presença de uma heterossexualidade ilícita ou da ausência da heterossexualidade aprovada. Todas elas são tidas como prostitutas.
É daí, inclusive, que vem o hábito de agrupar lésbicas e prostitutas em uma mesma categoria, e de transformar em “atos sexuais” sujos as afeições trocadas entre mulheres. O que algumas ditas autoridades em sexualidade afirmam — Havelock Ellis, Frank Caprio e Harold Greenwald —, em resumo, é que a prostituição, tida como o mais promíscuo dos atos heterossexuais, é uma pseudoheterossexualidade e uma fuga do lesbianismo!
A autora termina esse capítulo falando da invasão masculina aos espaços sagrados das sacerdotisas virgens, transformadas em prostitutas rituais. O mesmo processo que transformou a lésbica e a companheira em prostitutas foi o mesmo que transformou e heterosexualizou as sacerdotisas em prostitutas. O capítulo seguinte vai analisar a versão cristianizada da virgem sagrada e “mulher livre/fácil”: a freira.
These woman were required to be virgins, their virginity being sacrificed as a ritual offering. If we see virginity in a more woman-defined sense of female integrity — as a woman who is unto her Self, independent from men — we can also understand how men would perceive such integrity as necessary to contain and control. Thus the sacred virgin becomes the sacred prostitute who later becomes the secular prostitute.
Em tempos de campanhas deliberadas em prol da desinformação, tem me dado cada vez mais vontade criar, escrever e produzir. Sinto em outras pessoas a mesma necessidade e vontade reprimida. A tirada da poeira deste blog surgiu dessa ânsia.
Precisamos estudar e nos armar para a guerra suja da informação que se faz contra a teoria e o conhecimento produzido por mulheres. Mergulhar nessa teoria, sintetizar seus desenvolvimentos e facilitar a sua passagem adiante é uma das formas de se produzir, difundir e perpetuar esse conhecimento. Acredito que não existe livro melhor para continuar a série de fichamentos em que este blog se meteu que esse. Boa leitura!
Introdução
RAYMOND, Janice. A Passion for Friends: toward a philosophy of female affection. Melbourne: Spinifex Press, 2001.
A Passion for Friends, de Janice Raymond, começa com um curto prefácio e uma longa introdução onde a autora vai descrever a obra e apresentar suas premissas. No prefácio, ela narra o silêncio dos escritos feministas sobre amizades entre mulheres quando começou a escrevê-lo em 1980. E que apesar de “o pessoal ser político”, o pessoal era muitas vezes deixado de lado quando se tratava de relações e políticas entre mulheres. Ela aponta também que, naquela época
One of the divisions was between radical feminists and socialist feminists. By and large, it was socialist feminists who got to define the divisions, since it was they who ended up in institutionalized and secure positions in universities.
Assim, ela conta, as feministas socialistas — que mais tarde se tornaram pós-modernas — se importavam mais em catalogar os “tipos de feminismo” do que com um verdadeiro debate de ideias. Nessa tipologização, o feminismo radical é classificado como “essencialista”, “ontológico” e teoricamente fraco. Isso porque ele não se apoia em paradigmas anteriores e tradições filosóficas masculinas que os autorizem como tradição teórica. O feminismo radical (e aqui ela cita Catharine MacKinnon) é um “feminismo não-modificado”, “não qualificado por modificadores pré-existentes”. Da mesma forma, ela pretende no livro tratar da amizade “não-modificada” entre mulheres, independente dos homens, onde as mulheres se colocam no centro de suas relações.
Na introdução, Raymond começa tratando da percepção geral de que as mulheres, ainda que na companhia de si mesmas mas sem a tutela de um homem, são vistas como estando sozinhas. E mesmo quando passam suas vidas inteiras sem essa tutela, são vistas como menos felizes sem a presença masculina.
“[…] even when women are engaged in the richest of pursuits, they are impoverished if men are not involved. This sentence would never be written about men’s groups that historically were engaged in political intellectual and social activities in which no women were involved.
“The perception here is that women together with their work follow no “trail” or “logic” of their own. No matter how brilliant or creative a woman’s work is, it can “only be accessed in relation to” brilliant men. Or, quite simply, from the point of view of hetero-relational vision, women’s work, like woman herself, is perceived as derivative.
Raymond continua dizendo que as mulheres sempre foram amigas, mas que as evidências dessa tradição de amizade foram “desmembradas” (termo da Mary Daly). Isso acontece na tentativa de desmembrar a identificação das mulheres entre si mesmas (seu Self), para torná-las incapazes de identificar as forças dentro de si e nas mulheres ao seu redor.
A central premise of my book is that burried deep in the past, present and future of female existence is an original and primary attraction of women for women. It is manifested by many different women in many different ways. Women who have manifested and do manifest this affection for woman initially care about their Selves and thus cherish the friendship of others like their Selves.
Ela argumenta que é através da amizade entre mulheres que as mulheres podem se reinventar dentro de um mundo em que os padrões de como uma mulher deve ser foram todos criados por homens. Nessa parte ela cita uma outra frase da Simone de Beauvoir que adoram tirar do contexto: “se as mulheres não existissem os homens as teriam inventado”. A frase continua dizendo que as mulheres existem longe/fora da inventividade dos homens.
Ela reconhece que nem todas as mulheres conseguem ter ou manter amizades, e que se trata de uma dificuldade comum e reconhecida dentro do movimento feminista. Foi um dos motivos para ela ter escrito o livro, inclusive, e para se livrar do luto dessas amizades perdidas.
Raymond então conceitua gyn/affection (gino-afeição?) e hetero-relações. Gyn/affection seria a atração, influência e movimento entre mulheres, enquanto que as hetero-relações seriam uma série de relações econômicas, políticas, sociais e afetivas entre homens e mulheres que acabam criando o que ela chama de “hétero-realidade”.
“Women who affect women stimulate response and action; bring about a change in like; stir and arouse emotions, ideas and activities that defy dichotomies between the personal and political aspects of affection. Thus Gyn/affection means personal and political movement of women toward each other. As “the personal is political,” so too “the political is personal”.
“While it is true that certain kinds of political activity are and have to be possible between persons who are not friends, both politics and friendship are restored to a deep meaning when they are brought together — that is, when political activity proceedes from a shared affection, vision, and spirit and when friendship has more expansive political effect.
“[…] friendship is a social trust. It is an understanding that is continually renewed, revitalized, and entered into not only by two or more political beings who claim social and political status for their Selves and others like their Selves.
O longo trecho a seguir está traduzido para o português porque o publiquei em minha página pessoal do Facebook.
“A mulher feita pelo homem tem como prioridade as relações hétero. A literatura, a história, a filosofia e a ciência do patriarcado têm reforçado essa relação supostamente mística e primordial da mulher pelo homem. Como expresso no Gênesis, e daí por diante perpetuado pelo patriarcado, o imperativo hétero-relacional é unilateral. “O seu desejo será para o seu marido, e ele dominará sobre ti” (Gênesis 3:16-17).
Importante entender que as normas da hétero-realidade têm em mente a mulher pelo homem, e não o homem pela mulher. As mulheres têm se dedicado aos homens de modos bastante diferentes daqueles em que homens existem pelas mulheres. O dito bíblico torna essa diferença bem clara. Ele afirma simplesmente que, dentro da hétero-realidade, mulheres existem para os homens ontologicamente; ou seja, ela é formada por/para ele e não pode existir sem ele. O destino e desejo dela fabricados pelo homem são consumidos pelo apetite voraz dele. A essência e a existência dela dependem sempre de estar em relação a ele. Como posto por Nancy Arnold, as mulheres se tornam o “essencial não-essencial”.
No entanto, o homem está acidentalmente ligado à mulher; isto é, o desejo e o destino de um homem, quando incluem mulheres, não estão circunscritos por relações com mulheres. Em vez disso, seu destino é o de construtor de mundos na companhia de seus amigos homens. Seu imperativo é criar o mundo e sua cultura, ciência e tecnologia “com o suor de seu rosto”. E o homem faz isso primeiramente em conjunto com outros homens.
O destino do homem é, portanto, ultimamente homo-relacional. A normativa e o real poder das homo-relações masculinas é disfarçado pelo fato de que esse rapport homem-a-homem é institucionalizado em cada aspecto de uma aparente cultura hétero-relacional. São as mulheres que carregam o fardo de viverem no imperativo hétero-relacional. Na verdade, esta é uma sociedade homo-relacional construída em relações, transações e laços entre homens em todos os níveis. As relações hétero servem para prover aos homens sustento e suporte das mulheres que eles não conseguem de outros homens. A hétero-realidade é o disfarce da homo-realidade.”
Raymond argumenta que não é só uma questão de heterossexualidade, mas de toda uma hétero-realidade construída e institucionalizada que acaba formatando as relações entre homens e mulheres e, consequentemente, entre mulheres e mulheres. É por causa dessa hétero-realidade e da dinâmica dessas hétero-relações, por exemplo, que uma atividade que antes era inteiramente feminina — parteiras e tudo o que envolve dar à luz — acabou sendo invadida pelos homens, uma vez que eles devem ter direito ao acesso às mulheres em qualquer circunstância no patriarcado.
A autora diz que essas hetero-relações afetam até mesmo o feminismo. A noção de que o feminismo deve buscar igualdade aos homens — em vez de autonomia, independência, amor e cooperação entre mulheres — acaba colocando uma premissa equivocada ao feminismo, definindo as mulheres em relação aos homens e não em relação a outras mulheres. Uma das críticas que ela faz aqui ao feminismo liberal e ao marxista é que ambas estas formas do fazer feminista investigam e localizam as mulheres principalmente em relação a homens, sua história e cultura.
Depois, a autora define seu conceito de “gyn/affection” em relação ao Lesbianismo, mostrando pontos de contato e diferenciações entre ambos os conceitos. Ela retoma as conceituações mais amplas de Lesbianismo, como a apresentada por Adrienne Rich, que o define como um amor entre mulheres livre, independente e florescendo dentro de redes de apoio mútuo. Raymond vai buscar se distanciar um pouco dessa definição por motivos filosóficos. Ela esclarece que ser lésbica está muito além do contato genital entre mulheres, mas que o Lesbianismo (com L maiúsculo, ela frisa) precisa necessariamente incluir a dinâmica sexual, erótica e afetiva. “Gyn/affection”, por outro lado, pode até incluir o Lesbianismo, mas se situa para além da vivência especificamente lesbiana.
Depois da apresentação desses conceitos, Raymond esclarece que tipo de trabalho é este livro. Trata-se de um trabalho de filosofia onde não apenas ela faz uma genealogia das amizades femininas, mas também busca fazer filosofia propriamente dita. Ela tenta se distanciar um pouco de outros trabalhos — como o da própria Simone de Beauvoir — que posicionam as mulheres como o Outro, porque essa alteridade criada pelos homens é destrutiva e, ainda que sirva para propósitos feministas, não vai além. Ela argumenta que o feminismo não deve se preocupar somente em tentar desvelar a opressão das mulheres, mas também pensar os nossos objetivos enquanto grupo e nas forças que nos mantém sobrevivendo e lutando. Construir o feminismo somente em cima dos efeitos horrendos do “Estado de Atrocidade” não permite que as mulheres se identifiquem entre si pelos seus aspectos positivos, mas somente pela dor e sofrimento compartilhado.
“Women must ask not only what we are fighting against but also what we are fighting for. The destruction of all systems of female opression and the development of female friendship go hand in hand.
Raymond fala do método filosófico que utiliza no desenvolvimento do livro, que é a genealogia. Há, inclusive, uma nota de rodapé onde ela reconhece a importância de Foucault no desenvolvimento desse método. Mas ela dá uma cutucada nele: sua filosofia é toda enraizada em “uma visão de mundo pornográfica” e o desprezo pelas mulheres é bastante óbvio em sua obra.
Ela diz que, apesar de os contextos onde as mulheres vivem e viveram através dos séculos poderem variar bastante, ela busca em sua genealogia as experiências comuns das mulheres de viverem em um mundo dominado por homens. Ainda que boa parte das evidências das resistências das mulheres dentro do mundo hétero-relacional tenha sido apagada, é nas proibições e nas restrições que se colocam às mulheres que se pode descobrir essa resistência.
A autora encerra esse capítulo introdutório retornando novamente ao slogan de Carol Hanisch, “o pessoal é político”. Ela critica a forma como feministas têm falado sobre ideais e realidades possíveis de comunidade e irmandade, sem no entanto entrar na questão da amizade entre mulheres — ainda que muitas tradições feministas tenham levantado a necessidade de se construir uma solidariedade entre mulheres. Ela retoma a expressão “Estado de Atrocidade” para apontar que o feminismo deve significar algo além da luta das mulheres em conflito com homens e a supremacia masculina, mas também incluir que se trata de mulheres em acordo entre si e entre si mesmas.
“It is not enough for feminist to dissect the corpse of patriarchal pathologies. It is not enough for women to depict the state of hetero-reality. Women have not always been for men. We need to know the genealogy of women who did not and who do not exist for men or in pivotal relation to them. And we need to create a vision of Gyn/affection. What women search for can be as important as what we find.”
O texto abaixo é um fichamento para uso pessoal que fiz do livro “Utopia e Disciplina“, de André Villas-Boas. Uma bibliografia importante tanto na minha formação enquanto estudante de design quanto como professora de Teoria e História do Design, função que exerci entre 2016 e meados de 2018. Usei uma edição física de 1998, que ainda guarda a intenção de não ser, propositalmente — dado seu projeto gráfico, que rompe com os principais cânones compositivos do design gráfico —, uma leitura fácil.
REFERÊNCIA: VILLAS-BOAS, André. Utopia e Disciplina. Rio de Janeiro: 2AB, 1998.
Introdução
Aqui, André Villas-Boas apresenta sua obra: ele parte do ponto que o design gráfico é um fruto da sociedade de massas capitalista e que atingiu o seu ponto de canonização com o design funcionalista e a criação das escolas de design. Ele defende que o que é tido como história do design não é necessariamente a história do design em si, mas a história de um design, de uma perspectiva do fazer design muito específica que foi construída juntamente com as vanguardas artísticas e culminou no Modernismo e na criação de uma “cultura pública”. Nos anos 70, há crise do projeto moderno, e o próprio design passa a ser influenciado por ideias “não-canônicas” — que é como o Villas-Boas chama o que normalmente se chama de “design pós-moderno”.
P. 22: “Por sua vez, foi fundado todo um arcabouço teórico — e aí se revela o papel preponderante da história oficial do design gráfico nesse processo — para construir uma revisão da experiência histórica que privilegiasse um determinado design definido como o design correto. A ainda inconsistência do design como atividade profissional socialmente reconhecida contribui para este processo na medida em que profissionais da área — especialmente quando não tem ainda a carreira consolidada — tendem a recorrer a estes cânones como comprovação da sua competência profissional. Aderir ao paradigma hegemônico, identificando-o como a própria definição da profissão, se torna uma prática eficaz para a obtenção de reconhecimento social como profissional. Esta prática contribui para a manutenção destes cânones, ainda que eles já não tenham como se sustentar como princípios únicos de projeto.”
O design gráfico se torna necessário
Nesse capítulo, o Villas-Boas vai contextualizar os movimentos e vanguardas das artes e “novas artes”, e suas diferenças para as escolas de design que viriam a canonizar atividade, especificamente o design gráfico. Ele começa no século XIX, falando sobre como a segunda fase da revolução industrial trouxe novas necessidades comunicacionais, ainda que não houvesse um profissional específico para atendê-las.
P. 25: “Seria ingênuo crer que as inovações tecnológicas foram, por si mesmas, a razão dos novos preceitos estéticos que, pouco a pouco, vão se estabelecendo na publicidade da época. Se, por um lado, essas transformações traziam novas possibilidades de criação aos cartazistas, por outro, a busca e a adoção delas era resultado do contexto histórico no qual elas se desenrolavam e para o qual se tornaram oportunas. Nasciam não apenas porque se tornavam possíveis, mas porque necessárias. Os novos recursos de [P. 26] layout eram possibilitados pelas novas técnicas, mas se originavam da necessidade que a nascente sociedade de massas sentia por uma comunicação mais otimizada: mais imediata, chamativa, convincente e de aplicação rápida, barata e massiva.”
Fala-se, então, sobre o impacto dos gráficos de segunda linha, que usavam e abusavam das inúmeras tipografias disponíveis. As novas técnicas permitiam aplicações a ponto de mudarem a forma como se compunha uma página; mudou, também, a forma como se encarava a execução de uma publicação, antes uma tarefa com rigor de arte, como era encarada pelos antigos calígrafos.
É justamente na tipografia que o Villas-Boas vai notar como essas novidades e ruptura de movimentos da época lidam com seus cânones. No caso da nova indústria gráfica que nascia, houve uma difusão do uso de tipografia sem serifa, antes reservadas apenas para impressos mais baratos e populares.
P. 28: “O caos comunicacional e a desarmonia dos layouts eram resultado involuntário dos obstáculos técnico-formais da época, e não fruto de uma busca por novos recursos de expressão estética, como fariam as vanguardas algumas décadas depois. O novo estágio do desenvolvimento capitalista explicitava a necessidade de um profissional cuja tarefa fosse organizar visualmente impressos que visavam a comunicação em larga escala. No entanto, este profissional especializado ainda não existia [P. 29] propriamente. Nesta época, já é possível falar em design enquanto projeto de produto, mas ainda não em design gráfico.”
O autor fala então do que ele chama de antemodernismo. Para ele, o antemodernismo engloba vários dos movimentos em busca de uma nova estética em design que começaram a surgir no século XIX e início do século XX na Europa e nos Estados Unidos. Sob este guarda-chuva ele coloca o Art Nouveau (França), o Arts & Crafts (Inglaterra), Secessão (Áustria), Jugendstil (Alemanha), Liberty (Itália), Modernismo (Espanha), e Modern Style (EUA).
Sobre esses movimentos ele assinala que não são rupturas com os cânones anteriores, ainda que tragam algumas inovações e influências externas, como a da arte japonesa. Além disso, coloca ênfase nas estruturas, que são tornadas mais graciosas graças à intervenção do artista/designer. Trata-se de um movimento essencialmente estético, no sentido ornamental.
P. 33: “Embora tenha surgido poucas décadas antes das vanguardas históricas modernistas, Art Nouveau, Arts & Crafts e os demais movimentos antemodernistas distinguem-se radicalmente delas, como já se pode concluir. O Antemodernismo não tem na ruptura [P. 34] sua pedra de toque, não se caracteriza por qualquer forma de negatividade crítica, não possui conteúdo programático formalizado enquanto manifestação coletiva nem se prende a retóricas salvacionistas. Representa uma curiosa reação antecipada a demolição do academicismo que o Modernismo viria a fazer. Talvez seja este seu maior mérito, como sintoma involuntário das condições históricas que propiciaram o advento das vanguardas do primeiro terço do século […].”
O autor vai identificar nas vanguardas artísticas do início do século XX justamente a ligação entre Bauhaus e os movimentos modernistas, rupturas e pontos de contato. Ele começa essa parte falando sobre como o Cubismo foi uma das primeiras vanguardas a trabalhar a bidimensionalidade na pintura de forma intencional, abraçando as características próprias da técnica.
P. 38: “A ligação histórica entre o Antemodernismo e a Bauhaus — apontada ao fim do tópico anterior — só se torna possível a partir do detalhamento deste enorme hiato, que começa com o Cubismo de Picasso e Braque. A experiência cubista — que tem como marco histórico Les Demoiselles d’Avignon (1907), de Picasso, quando o antemodernismo ainda guarda vigor — finca os parâmetros para que a composição clássica seja estilhaçada e surja uma nova apreensão do suporte (bidimensional, por natureza). É essa nova apreensão que, explorada diferentemente, está na base da concepção formal-compositiva do design gráfico.”
A bidimensionalidade seria a fronteira legítima que distingue a pintura de todas as outras formas de arte.
P. 38: “Antes de mais nada, a pintura é bidimensional, plana, achatada e está inequivocadamente determinada por esta característica, por mais que tenha tentado — com o cubo cênico da Renascença, por exemplo —, desvincular-se dela perante o observador.”
O autor expõe que a perspectiva Renascentista, enquanto cânone, ainda é muito evidente nas obras de outros movimentos artísticos até aquele momento. Mesmo que alguns deles assumam a bidimensionalidade do seu meio, o Cubismo é o primeiro movimento que vai deliberadamente utilizar a perspectiva em função do espaço plano. Nisso, essa vanguarda artística se assemelha muito ao design: a bidimensionalidade é o que caracteriza a sua estética. Assinala, no entanto, que a influência do Cubismo sobre o design gráfico é “essencialmente conceitual”, e que a interação das influências do Cubismo sobre as demais vanguardas é que vão influenciar de fato a construção do design gráfico.
P. 40: “Numa análise última, o uso de grandes áreas chapadas, características da imagem gráfica, se deve aos cubistas.”
Além disso, outras influências importantes do Cubismo, em trocas com outros movimentos contemporâneos, são a ideia de desconstrução do objeto através da manipulação da perspectiva, e a sintetização do objeto em signos. Influências diretas dessas ideias no design são as obras do chamado Art Déco.
Sobre o Futurismo, Villas-Boas é um pouco mais sucinto: a principal contribuição desse movimento para o design gráfico sem dúvida é a exploração do uso da tipografia. Aqui, os cânones não foram apenas subvertidos, mas completamente negados em seu manifesto. No entanto, o movimento também é responsável pelo posicionamento modernista em relação a era industrial e a tecnologia. O Futurismo busca a estética da sociedade industrial explicitamente. Trata-se não apenas de um entusiasmo pela tecnologia, mas de uma verdadeira histeria: ainda que não fosse uma exclusividade desse movimento, foi o Futurismo que com mais fervor celebrou a guerra.
O Dadá é então apresentado como antagonista do Futurismo. Ainda que possuam semelhanças — principalmente no que diz respeito às suas composições tipográficas —, o Futurismo carrega um otimismo de começo de guerra que o Dadá não comporta.
P. 47: “Com seu niilismo e teor provocador, os dadaístas se remetem ao mesmo ponto que o movimento futurista: a sociedade industrial (de certa forma, a grande questão pela qual passa toda a discussão do Modernismo). O objeto continua o mesmo mas os sinais são trocados: os futuristas são a favor da guerra, os dadaístas contra; os futuristas glorificam a sociedade industrial, os dadaístas a condenam; os futuristas exploram uma estética que remete diretamente à tecnologia (portanto, ao racional), os dadaístas buscam o primitivo (representado pelo irracional). Esta contundência explica a resistência da cultura hegemônica em absorver o movimento [P. 48] mesmo décadas após seu fim.”
Mas, ainda que semelhantes em seus aspectos técnico-formais, os dadaístas terão uma maior liberdade no uso da tipografia que os futuristas. Enquanto os futuristas usavam a tipografia graficamente enquanto ênfase das ideias que as letras carregavam, os dadaístas iam além, de modo que as letras eram complementares à composição e não apenas ilustravam seu conteúdo.
O Dadá fez também uso extensivo da colagem e influenciou diretamente na criação do Surrealismo.
Arte e Tensão
O capítulo 2 começa questionando a tensão entre a esfera produtiva e a esfera artística. A divisão entre essas duas esferas teria começado ainda na primeira onda da Revolução Industrial, no século XVIII, onde existe a separação entre arte e técnica: a arte estaria a serviço do espírito, sendo autônoma da esfera produtiva, e tendo como valor de uso sua função simbólica; nos momentos em que houve uma tentativa de se re-vincular a arte e a produção no século XIX, esses movimentos foram encarados como artes menores/aplicadas/decorativas.
P. 51: “Não é mais possível conceber a arte como produção. Espremido entre o burguês e o proletário, o artista converte-se num coadjuvante de luxo, a quem se quer cabe a posição de mediador: ele está acima das duas partes no que concerne a abstração — ainda que virtualmente ao lado da primeira no que concerne as relações sociais de produção.”
Porém, a própria forma como a sociedade industrial encara a arte é que vai dar as condições históricas necessárias para o surgimento das vanguardas artísticas do início do século XX. A ideia das vanguardas artísticas era justamente (e, talvez, principalmente) a de reinserir a arte na vida comum. O design gráfico vai emergir dessa tentativa de integrar essas duas esferas, ainda que um dos resultados de sua institucionalização seja justamente o reforçar dessas diferenças.
P. 53: “A relação entre design gráfico e Modernismo é tão estreita que o segundo não apenas originou o primeiro como seu desdobramento histórico alterou radicalmente o próprio papel social daquele primeiro. A partir do momento em que as transgressões vanguardistas começaram a ser incorporadas positivamente, o design gráfico imediatamente respondeu ao processo — aderindo a esta incorporação positiva e passando a servir de corpo e alma a produção do capital, e negando sua origem como transgressão. Tal é, em linhas gerais, o papel histórico da Bauhaus, ainda hoje o grande marco histórico do design.”
Enquanto as rupturas vão passar mais ou menos como variações estilísticas em áreas como a literatura e arquitetura, o design gráfico vai servir como escoadouro dos modernistas em relação a esse novo estatuto social da arte provocado pelo modo de produção capitalista. Ainda que não seja o veículo principal de nenhuma dessas vanguardas, o design surgiu de suas trocas e interações.
No contexto histórico do Modernismo, a arte se vê tensionada entre dois polos de tração: a tração imediata pela intervenção social (arte como instrumento de mudança social) e a tração mediada pela técnica (arte tecnologizada em função do capital). A diferença entre ambas é que a tração mediada pela técnica vai buscar a interferir nos processos sociais de forma indireta, mediada pela tecnologia. Esses não são pontos de tensão estanques, mas justamente tracionam sobre um mesmo eixo. Ė dessa tensão que o design se canoniza e emerge como disciplina autônoma e atividade profissional específica.
P. 56: “O design gráfico é produto desta tensão da arte, nasce da arte tensionada e por isso acaba tendo com ela uma reação até hoje não resolvida, explicitada pela permanência de questões como a da inclusão de produções artesanais ou semi-artesanais entre possíveis produtos de design e da polêmica em torno de sua gênese histórica, assim como pela crise do funcionalismo, que se torna particularmente visível especialmente a partir da década de 80.”
O design gráfico é então um fator de razão, ordenação e clareza orientado em função de uma certa concepção de função, distante da esfera artística (sua origem) e voltado para a esfera produtiva. Aplicação do design, segundo o autor, é “destinada a regulação do fenômeno da fetichização da mercadoria e a reprodução do capital” [P. 57].
A tração imediata pela intervenção social
As vanguardas surgem no início do século XX com um compromisso de transformação social. Ainda que estejam unidas em função de uma ruptura com os paradigmas tradicionais da arte, é basicamente só nesse ponto em que elas se unem. A conjuntura histórica de onde elas emergem parte:
do academicismo na arte, institucionalizado pelas aristocracia que detinham hegemonia, mas estavam ultrapassadas;
das promessas da tecnologia, ainda incipientes e provocadas pela segunda fase da Revolução Industrial, e que fascinavam algumas vanguardas a ponto de adotarem a estética da técnica; e
das possibilidades bastante palpáveis de revolução social, uma vez que as democracias não estavam consolidadas, as monarquias estavam fragilizadas e os movimentos operários não estavam organizados o suficiente.
O autor vai usar como exemplo de movimentos, tanto de direita quanto de esquerda, que têm como objetivo a intervenção social. Na direita, a agitação política futurista, que tem como veículo principal de ideias o manifesto. Na esquerda ele trata da experiência construtivista na União Soviética. Ambos os movimentos adotam a estética da máquina.
A tração mediada pela técnica
Neste subtópico, o autor vai tratar de alguns movimentos que buscavam uma arte racional, integrada à vida e ao universo da técnica — uma nova arte para novos tempos. Nesse sentido de tração, os artistas se converteriam em técnicos.
Ele inicia falando do De Stijl na Holanda, e sua obsessão pela racionalidade. O movimento transformou as composições impressas, fazendo uso de chapados, espaços em branco, fortes linhas compositivas e fontes sem serifa. Ele chama o De Stijl de “excessivamente escolástico” e com “apego delirante” à racionalidade, o que teria, inclusive, atrapalhado sua interação com outros movimentos como a Bauhaus e os construtivistas. Aqui há a discussão sobre o paradoxo entre a morte da arte — porque infiltrada por toda a sociedade — e a construção de uma arte cada vez mais autônoma e conceitual — voltada para si mesma.
Sobre a experiência de Bauhaus, ele detalha os períodos históricos conforme a literatura, se apoiando principalmente em Maldonado (1975), e retomando tentativas anteriores de criação de escolas para a produção industrial. Villas-Boas ressalta que as disputas internas entre os professores e diretores, e o fato de Bauhaus ser uma escola de financiamento público foram alguns dos fatores que colaboraram para que escola não fosse exatamente pioneira, mas uma experiência que ocorreu concomitantemente e serviu para sintetizar as ideias das vanguardas. Ele também aponta que o design gráfico propriamente dito foi uma preocupação posterior de Bauhaus, que surge a partir das suas próprias necessidades comunicacionais. A tentativa da criação de uma linguagem estética internacional ou ainda universal, permeando o cotidiano, foi sequestrada mais tarde para propósitos totalitaristas e capitalistas.
A veloz canonização
Aqui, o autor fala sobre como Bauhaus ajudou a construir e difundir o que se chama de Estilo Internacional suíço. Ao mesmo tempo em que ela própria dizia não defender um “estilo Bauhaus”, se estabeleceu sobre os parâmetros essenciais de projeto do Funcionalismo. Ou seja: “a ordenação, a clareza, a legibilidade, a facilidade de decodificação, a rapidez de absorção da comunicação pelo observador, a subserviência do quociente estético à otimização comunicacional, o dinamismo em prol da persuasão e adequação simples, rápida e econômica ao processo técnico no qual o projeto será reproduzido.” [P. 88]
P. 94: “Ou seja: a Bauhaus negava a necessidade do estilo, pregando que a estética do produto resultase unicamente de sua eficiência frente as funções para as quais fora concebido. Se haveria um estilo, seria o “estilo da função”. A recusa por amalgamar-se como estilo, assumindo-se como solução definitiva é o grande axioma funcionalista — e justamente por onde ele se institucionalizará como arcabouço totalizador para o design gráfico e incorporará sua própria natureza como disciplina e atividade profissional específicas.”
O autor aponta que a canonização da arquitetura moderna foi muito mais devagar (ou mais conflituosa) que a canonização do design. A arquitetura, quando utilizada como ferramenta de reconstrução depois da Segunda Guerra Mundial, tinha que lidar com as memórias e as identidades dos locais onde era aplicada. Por vezes, a encomenda desses arquitetos de reconstrução era reproduzir o local ipsis litteris como era antes do início da guerra. Em outros casos, a arquitetura modernista tinha que fazer um conciliamento com a tradição já existente. E, ainda que tenha partido da Europa, foi no Novo Mundo (e no Terceiro Mundo) que arquitetura “internacional” teve seus maiores êxitos, uma vez que esses lugares não tinham essa tradição arquitetônica — vide Brasil, Estados Unidos, México, Índia. Nesses lugares, os arquitetos modernistas puderam construir cidades inteiras.
Villas-Boas então contextualiza a Escola Norte-Americana, formada a partir de um mercado publicitário já existente e fértil somado a migração de artistas, designers e arquitetos europeus fugidos da guerra. Os ideais do funcionalismo casarão perfeitamente com a lógica capitalista ao chegarem nos Estados Unidos.
O Estilo Internacional suíço também ajudou a consolidar o funcionalismo e irradiar suas ideias para outros lugares do mundo. Como ponto de neutralidade em meio aos conflitos europeus, as escolas da Suíça abrigaram gente de toda Europa, mas principalmente os de língua germânica, exportaram influências para outras escolas, inclusive Ulm e a Escola Superior de Desenho Industrial (ESDI) no Brasil.
P. 104: “[…] guardadas as especificidades das experiências autóctones, o design gráfico que acaba por prevalecer é marcado por uma filtragem das diversas experimentações vanguardistas, seguindo o caminho aberto pela Bauhaus, tendo como parâmetro fundamental a funcionalidade, estabelecidas sobre determinados quesitos muito determinados e totalizadores, para o alcance de uma pretendida eficiência, insuperável por qualquer outra forma de fazer design.”
As tendências não-canônicas contemporâneas
Neste capítulo, Villas-Boas expõe os cânones do design gráfico e como eles têm sido expandidos e desafiados desde os anos 80, usando como exemplo o designer britânico Peter Saville, que faz as capas do New Order.
Ele divide os cânones do design entre técnico-formais e conceituais. Entre os aspectos conceituais estão a redundância e a repetição, extremamente necessárias para uma comunicação clara e objetiva. Para ilustrar os aspectos conceituais ele utiliza o exemplo de Peter Saville, em cujos projetos nem sempre se prescindia a comunicação rápida, necessitando, na verdade, de decodificação prévia das informações presentes na capa de discos como Power Corruption and Lies, por exemplo. No contexto das gravadoras alternativas independentes dos anos 80, o projeto gráfico proposto por Peter Saville está, ao mesmo tempo, dentro da lógica de mercado e fora da lógica do design canônico.
Ao tratar dos aspectos técnico-formais, Villas-Boas usa como exemplo designers como David Carson e Neville Brody. O uso das novas tecnologias de editoração gráfica e composição não permitiram exatamente que as experimentações que esses designers fizeram fossem possíveis, mas deram o ferramental técnico para que essa exploração fosse mais “fácil”. A ideia não era exatamente o rompimento com os cânones do design, mas a de criar novas possibilidades compositivas.
P. 117: “Não se trata de transgredir o status quo, mas simplesmente de transgredir determinadas normas para uma inserção positiva neste mesmo status quo.”
Ainda que esse rompimento estético tenha acontecido, ele não é um rompimento propriamente dito — até porque muitas de suas composições lembram a estética dos trabalhos pré-canônicos —, segundo o autor, porque o uso dessas quebras de paradigma operam dentro de uma lógica de mercado. Mesmo que não utilizem os parâmetros funcionalistas, esses projetos funcionam. O autor aponta também que muitos desses pioneiros já tinham carreiras bem estabelecidas quando se propuseram a romper com os cânones, e que estes projetos em geral são destinados a públicos específicos (indie e subculturas). Não se tratam, portanto, de trabalhos pensados com o intuito de serem novas vanguardas estéticas.
O autor termina fazendo uma reflexão inspirado em Deleuze, Lyotard e Foucault, usando conceitos desses três autores para falar da transição entre sociedades disciplinares e sociedades de controle como um desdobramento da pós-modernidade. A crise do paradigma funcionalista do design gráfico estaria dentro da crise das grandes narrativas: se anteriormente as classes dominantes exerciam seu poder através de narrativas, e essas narrativas entram em crise, a forma de dominação precisa mudar.
P. 136: “O enfraquecimento da forma de dominação não leva necessariamente a perda da dominação pelas classes que a detém. A conservação da dominação é possível mediante a alteração da forma como ela é exercida, no que as construções simbólicas coletivas têm papel preponderante. Com a crise das grandes narrativas que lhe davam sustentação, a dominação por disciplinas cede gradualmente lugar à dominação por controle. Assim, o processo de estabelecimento da sociedade de controle pode estar na gênese do que conceituamos como pós-modernidade.”
P. 136: “Nesse primeiro estágio das sociedades de controle, a mídia — nas suas diversas formas — se apresenta como o controlato mais eficaz. O design gráfico encontra-se, assim, em pleno campo de operação do controle — seu espaço de atuação é justamente a mídia. Não há como ficar imune a esta configuração, seja de forma positiva ou negativa. As tendências não-canônicas contemporâneas parecem ser uma evidência de que, neste tiroteio, o design gráfico não quer ser o cego.”
Utopia e Disciplina
Neste último capítulo, o autor faz uma síntese dos assuntos discutidos no livro. Algumas citações merecem destaque.
P. 137: “Na contemporaneidade, o design gráfico pertence a esfera produtiva e não é esfera artística — embora guarde com esta uma profunda interface, assim como a áreas afins como a comunicação social e arquitetura. Ao contrário das hipóteses mais comuns encontradas na bibliografia corrente, o design gráfico não nasceu nem das artes plásticas, nem como desdobramento da linha evolutiva iniciada com as primeiras experiências de Gutenberg e posteriormente das casas tipográficas originárias do [P. 138] Renascimento, nem tampouco da publicidade. Uma revisão histórica demonstra que o design gráfico nasceu das experiências estéticas das vanguardas históricas, embora possa constatar-se a ocorrência anterior de artefatos igualmente produzidos graficamente. Estes impressos, no entanto, não tinham ainda uma conformação que atendesse às características funcionais-subjetivas e metodológicas próprias do design gráfico.
A emergência do design gráfico está intimamente ligada a expansão capitalista e, especialmente, à segunda Revolução Industrial, com a necessidade de produção de itens gráficos acessórios aos processos produtivos e distribuição de mercadorias que singularizam essas mercadorias umas das outras, objetiva e simbolicamente, bem como singulares em seus produtores. Embora sua função social nasça da esfera produtiva, é da esfera da arte que o design gráfico efetivamente emerge, através das experiências estéticas das vanguardas modernistas. Assim, a atual a locação do design gráfico na esfera produtiva é fruto de um processo histórico — que, portanto, tem de ser levado em conta para a compreensão do próprio design como área de conhecimento e atividade produtiva. Levando-se em conta as conclusões anteriores, pode-se afirmar seguramente que o design gráfico é por definição moderno e nasce do Modernismo. Não há, portanto, design gráfico antes do século 20 e muito menos um design gráfico pré-moderno.”
P. 140: “O design gráfico vive hoje uma crise paradigmática que tem sua razão, justamente, na concepção historicamente construída de que sua prática equivale ao próprio funcionalismo e que não tem sentido fora dela. Projetos contemporâneos demonstram essa crise de forma significativa e apontam para outros paradigmas de design gráfico. Essa crise paradigmática do design, evidenciada pela análise de trabalhos não-canônicos contemporâneos, parece estar articulada com a própria crise paradigmática que caracteriza a pós-modernidade, enquanto condição histórica e cultural.”
Pensando na melhor forma de fichar os materiais que leio, resolvi usar um método que tenho empregado para escrever sem ser atrapalhada pelo processo de escrever propriamente dito, e a respeito do qual um dia vou escrever um tutorial. Consiste basicamente em usar a ferramenta de ditar texto embutida no teclado do Android e depois ir corrigindo, pontuando e fazendo destaques, links e blocos de citações com markdown.
O texto abaixo, dividido em seções, não se trata de um fichamento completo da obra de Adelmo Genro Filho, nos moldes do que fiz com a série “Problemão de Gênero“. São apenas pequenas discussões e trechos dos momentos de “O Segredo da Pirâmide: para uma teoria marxista do jornalismo” que achei que poderiam ser pertinentes aos meus interesses de pesquisa.
A teoria dos sistemas sociais e o jornalismo como meio de manipulação
Ele argumenta contra essa teoria falando que as relações humanas não são como sistemas, porque nos sistemas eletrônicos entram os dados, mas não se criam novas informações lá dentro, há apenas o processo das que lá chegam. Ele diz que não afirma que os indivíduos são produtores de conteúdo soberanos, mas que eles não podem ser dissolvidos nem subordinados às relações sociais, por mais integrados que estejam a elas. São os humanos que determinam as finalidades das máquinas e não elas mesmas. Nem mesmo sistemas biológicos são “totalidades conscientes”.
Depois ele vai fazer uma discussão a respeito da natureza histórico-social dessa coisa de “humanos versus a natureza propriamente dita”. Segundo ele, na teoria dos sistemas seres humanos são vistos como os únicos sujeitos agentes do universo, homogeneizando todos os seres humanos em relação ao todo do universo.
P. 75: “Trata-se do fenômeno humano que, dotado de consciência, elevou-se acima do mundo físico, da objetividade em geral, não só porque é capaz de pensar esse mundo, mas igualmente de produzi-lo como realidade apropriada, como realidade humana e humanizada.”
As oposições entre as visões que ele discute são de “totalidade sistêmica vs totalidade concreta”, e “informação vs práxis”. Conforme o autor, a ideia de autoconstrução não pode ser substituída pela de sistema, nem a ideia de práxis pode ser substituída pela ideia de informação, por que a informação jornalística fica situada entre o provável e o qualitativamente importante (singular), e isso emerge da práxis.
P. 80: “A natureza da informação jornalística está intimamente ligada aos dois aspectos: 1) a indeterminação real dos processos sociais e naturais; 2) a qualidade e o grau das possibilidades concretas de escolhas que se colocam para os homens diante das alternativas nascidas da indeterminação do processo objetivo que eles vão constituindo.”
O singular não é necessariamente manipulável, mas pode ser arrancado de suas relações reais particulares e universais.
P. 87: “O domínio da linguagem, o controle da escrita, o monopólio da técnica de oratória e outras tantas prerrogativas das classes dominantes sempre foram igualmente instrumento de persuasão, controle e opressão. A questão essencial é o domínio político dos meios de comunicação pelas organizações das massas revolucionárias, como condição para que a qualidade das informações produzidas pelos centros emissores, em termos políticos, ideológicos e culturais sejam coincidentes com determinadas metas históricas definidas coletivamente. Não se trata, neste caso, de objetivos específicos, táticos ou mesmo estratégicos — que podem constituir aspectos do problema —, mas de objetivos históricos, definidos em termos de possibilidades concretas e valores revolucionários e humanistas.Tais metas, colocadas nos termos da práxis, aparecem como finalidades que se constituem internamente ao processo histórico pela atividade política das classes revolucionárias e dos indivíduos que assumem suas lutas e perspectivas.”
Lá pela página 248 ele retoma a questão dos sistemas sociais de uma forma mais branda:
[P. 248]: “A sociedade humana, como já foi sublinhado antes, não é um sistema que busca somente a sua reprodução e o equilíbrio, mas um fazer histórico prioritariamente prático que se abre a cada instante, em novas possibilidades aos sujeitos, embora ela apresente em seu processo de reprodução, sem qualquer dúvida, determinados momentos e aspectos nitidamente sistêmicos.”
Adorno e a indústria cultural
Ele começa esse subitem dizendo que Adorno foi um dos primeiros teóricos a falar da comunicação de massa e as suas relações com o mercado. Aí ele vai discutir as ideias do Adorno em relação às do Hegel, a ideia de totalidade, sistematização e fenomenologia no sentido hegeliano etc, em oposição (ou na visão) do Adorno. Ele diz que o Adorno é:
P. 94: “Alguém que vê o mundo como um agregado de fenômenos perdendo-se na sua unidade lógica originária, isto é, como fragmentação que se reconhece como tal, porque lembra da totalidade que poderia ter sido e que deve ser buscada como uma síntese final, embora jamais seja efetivamente realizável.”
A unidade do espírito com o mundo, no sentido hegeliano, ou seja, a totalização, é vista por Adorno como necessária e impossível. O Genro Filho vai dizer que essa ideia, “radical e irredutível” segundo ele, de uma totalidade que nunca existiu e se torna uma espécie de “ideal” (saudosismo?) é o que leva Adorno achar que o jornalismo é puramente manipulação e puramente a forma mercantil que ele assume no capitalismo. E depois ele vai dar um esculacho na escola de Frankfurt:
P. 95: “Adorno, Horkheimer e a maioria dos teóricos da Escola de Frankfurt jamais assumiram qualquer compromisso consistente — mesmo teórico — com a práxis revolucionária concreta.”
E mais adiante:
P. 95: “Um pensamento não pode ser medido pela “ênfase” que atribui ao aspecto prático ou teórico das ideias que produz. Uma concepção só pode ser julgada como tal, isto é, pela verdade teórica que apresenta ou não. É a sua relação com a práxis, enquanto o pensamento capaz de apanhar e direcionar a realidade, o que vai determinar a sua grandeza. A teoria, em resumo, deve ser julgada enquanto teoria. Neste exato sentido — não por uma questão de ênfase — é que se manifestam as limitações de Adorno. Sem esquecer a importância de seus estudos sobre arte, sublinhada pela maioria dos especialistas, é preciso apontar que a “dialética negativa” apresenta dois problemas teóricos. Em primeiro lugar, por [P. 96] ser uma “ontologia negativa”, na qual o ser aparece com o momento do não ser, ao invés de realizar-se o oposto. Em segundo lugar, porque essa postura negativa contém algo de apocalíptico, à medida que percebe apenas o aspecto divergente entre o movimento da razão, de um lado, e da realidade subjetiva de outro. Não reconhece a constituição progressiva, no curso da própria objetivação, de uma possibilidade superior da razão. A crítica, por mais ampla e profunda que seja, não se contém o momento concretamente afirmativo, torna-se diletante e não revolucionária. O negativo só destrói efetivamente quando ele próprio se afirma como positividade. Por isso, uma dialética puramente negativa, por não privilegiar ontologicamente o momento afirmativo, não consegue ser uma negação concreta: torna-se uma atitude intelectual de recusa abstrata, assumida por um observador individual e privilegiado. Eis o limite teórico e político da “dialética negativa” de Adorno.”
Aí ele vai entrar no conceito de “indústria cultural”, de Adorno e Horkheimer. Ele começa diferenciando o conceito de “cultura de massa” porque “indústria cultural” dá a ideia de que nenhuma participação democrática é feita pelas massas na produção dessa cultura. É uma forma de cultura que deixou de ser “também mercadoria” para se tornar essencialmente mercadoria.
Ele continua dizendo que a técnica envolvida não tem a ver com a qualidade tecnológica ou com o uso dessa tecnologia a serviço da obra de arte produzida pela indústria cultural, mas que serve para apresentar o simulacro como se fosse a obra de arte em seu lugar (aura?). A tecnologia repete o padrão cultural transformando o clássico em kitsch.
P. 98: “A TV certamente não faz das pessoas aquilo que quer, mas acentua e aprofunda aquilo que as pessoas já são. As imagens da TV oferecem o brilho que falta ao cotidiano cinzento da alienação, sem exigir esforço da atenção ou do pensamento, como uma propriedade que é usufruída de modo desatento, na forma de aparências que se projetam. A linguagem das imagens dispensa a mediação conceitual, é mais primitiva que as palavras. Por isso, ela favorece — tendo em vista a maneira como se insere a TV no capitalismo — o irracionalismo e a ilusão sobre o mundo. A voz que fala através dela é o discurso da imediaticidade, do mundo presente como algo natural e eterno, como uma espécie de voz do “espírito objetivo”.”
Um dos pontos meio estranhos dessa crítica do Genro Filho é que ele fala em “cultura de massa” e “indústria cultural”, mas não diferencia “cultura de massa” de “cultura popular”.
Lukács, arte e tecnologia
Genro Filho vai comentar a teoria do Lukács no livro “Introdução a uma estética marxista” falando que tanto a arte quanto o pensamento científico refletem a mesma realidade objetiva, essa sendo a ideia principal do texto. A ideia dele é discutir as limitações desse pensamento e não aceita esse pressuposto de que a arte reflete a mesma realidade da ciência e está sujeita às mesmas categorias, ainda que organizadas de outro modo.
O que ele vai dizer é que a realidade que tanto a arte quanto a ciência refletem não são a mesma coisa — apesar de não ser uma coisa arbitrária ou subjetiva —, mas que a realidade da arte mantém “pontos de pertinência” com aquela que é objeto da ciência, sendo realidades complementares — mais adiante [P. 176] ele que destaca que o Lukács usa a premissa materialista pra destacar a importância da realidade objetiva comum. Ele aponta que:
P. 174: “A ciência tende para a objetividade, para a revelação do em si do objeto, esse é o movimento que a caracteriza. A arte funde sujeito e objeto no contexto de uma totalidade particular, mas cujo conteúdo, embora não seja exaustivo, refere-se sempre à totalidade mais ampla da existência histórica e ontológica dos homens e da sociedade. A diferença da arte em relação à filosofia é que, ao fundir sujeito e objeto numa reflexão única, a arte não dissolve a singularidade das figuras nos conceitos e nas categorias. A arte, como indicou o próprio Lukács, supera a imediaticidade empírica do singular e a abstração generalizante do universal, conservando os subordinados na [P. 175] particularidade estética, quer dizer, no típico. Assim, embora cristalize e sua representação no particular e não no universal como tendem a fazer as ciências e, de maneira evidente, a filosofia, ela se volta para a mesma realidade da filosofia — uma relação de totalidade entre sujeito e objeto — e não para a realidade objetiva da ciência, que é só uma parte da totalidade.”
A partir daí, ele vai discutir algumas limitações teóricas da estética de Lukács a respeito da arte como reflexo da realidade e vai dizer que talvez isso seja um dos motivos porque o Lukács não compreendia as vanguardas artísticas, argumentando que, dentro da teoria dele, seria mais interessante comparar arte com trabalho, e não apenas como uma modalidade de conhecimento. Ele diz que é preciso reconhecer o conhecimento como insuficiente em relação a arte por causa da práxis: uma atividade de mútua produção entre entre sujeito e objeto.
[P. 176]: “As ciências naturais tendem para objetividade, para revelação [P. 178] da coisa em si. No entanto, jamais poderão esgotá-la. A condição para revelação da objetividade é atividade subjetiva, a posição teleológica do sujeito e sua tendência a uma apropriação crescente do mundo. Mas a subjetividade aqui, por um lado, é um pressuposto necessário (sob o ponto de vista ontológico da práxis), e, por outro lado, é um resíduo decrescente (sob o ângulo epistemológico), embora seja inegável exatamente por ser um pressuposto. As ciências sociais ou humanas, por seu turno, constituem uma revelação da objetividade na qual a subjetividade (ou a ideologia, dito de modo mais específico) que a pressupõe não se manifesta como um resíduo, mas como uma dimensão intrínseca à teoria e que a constitui, como um conteúdo necessário e legítimo. Aquilo que na objetividade natural aparece como probabilidade, na sociedade realiza-se como liberdade. Por isso, a adesão a uma ou outra possibilidade do real da parte dos sujeitos que o investigam, é tanto condição para que seja revelado o objeto como um aspecto constitutivo desse objeto. A subjetividade ou a ideologia, portanto, deixam de ser um resíduo decrescente para tornarem-se subjetividade objetivada, ou se quisermos, objetividade subjetivada. Mas, de qualquer forma, a dimensão teleológica torna-se, além de condição fundante do seu, tal como nas ciências naturais, parte integrante da elaboração teórica das ciências sociais.”
O futuro do jornalismo
Nesse pequeno trecho, Genro Filho fala um pouco do futuro do jornalismo como forma de conhecimento e apreensão da realidade, e suas potencialidades que ultrapassam seu contexto de produção:
[P. 199]: “…o jornalismo, algum dia, poderá também vir a ser radicalmente transformado. Mas o que estamos procurando acentuar é que o jornalismo não desaparecerá com o fim do capitalismo e que, ao contrário, ele está apenas começando ensinuar suas imensas possibilidades e potencialidades histórico-sociais no processo de autoconstrução humana. Como forma histórica de percepção e conhecimento ele está no fim do começo, não no começo do fim. Noutras palavras, no entardecer do capitalismo, em que estamos adentrando, o jornalismo recém está chegando a sua juventude.”
[P. 210]: “A maioria dos autores reconhece que a objetividade plena é impossível no jornalismo, mas admite isso como uma limitação, um sinal da impotência humana diante da própria subjetividade, ao invés de perceber essa impossibilidade como um sinal da potência subjetiva do homem diante da objetividade.”
[P. 254]: “A realização do comunismo, portanto, não pode ser pensada sem o pleno desenvolvimento dessa forma social de apropriação da realidade a que chamamos de “jornalismo informativo”.
Tenho ouvido muito synthpop ultimamente. Quero saber o que anda tocando além das músicas que se envolvem em polêmicas no Facebook, mas não sei direito por onde começar. Muito do que é novo que ouço por acaso parece bom, mas não me lembro de ir atrás depois por não me cativar o suficiente. E o resto é baseado em algo que já foi feito trinta anos atrás e muito melhor.
Enfim, tenho ouvido muito synthpop ultimamente, coisa velha. No trabalho, em uma sala cheia de gente, em uma função que exige concentração, às vezes o putz-putz é a única opção viável. Além disso, fica ótimo com a dose certa de guaraná em pó. A alternativa é cair no sono. Dentro desse papo de letras ofensivas e/ou empoderadas que andou rolando no Facebook, comecei a prestar atenção nas letras das músicas que eu ouvia e resolvi elaborar esta Pequena Lista de Músicas Supostamente Engajadas com Letras Bobas e Batidas Ótimas.
Seja por sempre se assumir que a função desse estilo é dançar quase num estado de transe em festas de um tipo que são cada vez mais raras hoje em dia — em comparação com o auge da cultura clubber dos anos 1980 e 90, seja por ser de um estilo próprio de um nicho muito específico e fazer parte apenas de playlists entituladas com termos como (heresia!) “revival” ou “nostalgia”, não lembro de ver muita gente questionando ou discutindo o conteúdo lírico dessas produções artísticas.
Os Pet Shop Boys se apresentaram em Curitiba no ano passado com uma equipe relativamente enxuta, o que deixou ainda mais evidente algo que gosto muito na banda, que é sua simplicidade musical. Ainda que tecnicalidades a respeito de música não sejam exatamente uma especialidade minha (nem campainha ando tocando mais), suponho que seja possível reproduzir a maioria das suas músicas com certa fidelidade fazendo uso de um teclado sequenciador e uma drum machine.
No quesito lírico, a banda sempre me pareceu muito astuta. Um exemplo disso são os títulos das canções, como “I don’t know what you want, but I can’t give you anymore” e “How can you expect to be taken seriously?”. Quanto às letras propriamente ditas, eles não costumam ser nem muito econômicos nem muito dramáticos — os dois extremos pra onde tendem as letras na música eletrônica em geral. São ótimas músicas pop, ao mesmo tempo que têm nelas uma gracinha rara de se encontrar.
No ano passado, enquanto se aproximava o show dos Pet Shop Boys na cidade, comecei a pensar nas músicas que gostaria de ouvir ao vivo e me dei conta que uma das minhas músicas favoritas deles tem uma letra bem… boba, para dizer o mínimo. Em defesa da banda, a música é uma versão.
A “It’s alright” do PSB tem poucas diferenças para a original em termos eletrônicos, que é de Sterling Void e Paris Brightledge, e foi lançada em 1989. Segundo consta na Wikipedia, Lowe e Tennant ouviram a música em algum lugar, acharam o máximo e quiseram botar a versão deles no disco “Introspective”.
Lançada em 1988, já nos primeiros versos a música mostra a que veio em termos de letra: uma referência direta ao Taliban no Afeganistão — mas sem citar nomes —, seguida de algo igualmente vago sobre a África do Sul. Logo em seguida, talvez para não falar em União Soviética com todas as letras, talvez por falta de habilidade do letrista em distinguir o que havia atrás da cortina de ferro, fala-se em opressão na Eurásia. E acaba por aí a análise geopolítica [1]: a partir daqui, o que parecia ser uma prece pela melhora de todas essas complicadas situações se converte em um foda-se.
O clipe, cheio de bebezinhos, é de uma fofura que não dá para entender direito. Por mais que a mensagem de um futuro melhor esteja aí presente, a letra ainda é um hino hedonista. Gerações virão e irão, mas a Música durará até a Consumação dos Séculos, porque Ela é o que nos sustém, então vamos chapar o globo, tacar fogo na pista e apagar com o cabelo.
Se você chegou até aqui nesse texto, estou ciente de que posso ter passado a impressão errada a respeito do que acho da música comentada. Considere que eu estava enumerando músicas que eu gostaria muito, demais mesmo, de ver os Pet Shop Boys tocar ao vivo. Se eu gostaria disso, é porque gosto da música. A letra ajuda muito no gostar de uma música, e por vezes — como os exemplos das últimas semanas podem demonstrar —, são fatores determinantes justamente no não gostar. A letra boba não me incomoda de modo algum nessa música. Ingênua ou niilista, quem se importa, se junto vem essa melodia maravilhosa?
Pensei, depois, em algumas músicas para figurar uma possível lista para um possível texto como este aqui que você está lendo. O YouTube me presenteou com a pérola que você pode ver abaixo: uma pequena apresentação em algum momento dos anos 1980 onde Depeche Mode e New Order tocam no mesmo palco, na Alemanha, num festival chamado Musik Convoy. E qual música o DM escolhe para fazer lipsync e pagando um micão, com o New Order entrando ao vivaço depois deles [2]?
Eu poderia citar mais uma pá de música do Depeche Mode mais ou menos nessa linha além de “People Are People”, como “Everything Counts” — cuja letra tem o mesmo grau de vagueza que “It’s alright” e tenta aí ser um grito de protesto contra as grandes corporações, acho — ou “Blasphemous Rumours”, que supostamente fala de suicídio e a influência maligna da religião, algo que me fez gostar muito dela em uma certa época da minha vida. Mas, se não me engano, essas letras são todas do Martin Gore, que é darks desde antes de ser darks estar na moda. Chega uma hora que não dá mais pra separar pseudo-ativismo de drama.
Para fechar a lista, outra música sensacional [3], com um clipe idem, que você pode apreciar abaixo. Não estava conseguindo identificar muito bem a mensagem por trás de “Chorus”, do Erasure. Ainda que alguns versos isoladamente parecessem passar uma mensagem, no todo, a música parece uma colcha de retalhos de mensagens supostamente em favor do meio ambiente e anticonsumismo.
A Wikipedia não trouxe muitas informações relevantes a respeito da mensagens que os artistas quiseram passar com essa música. A letra, que evoca ganância algumas vezes, e aponta para um fim triste e seco dos recursos naturais, como eu disse, parece às vezes um poema daqueles que o pessoal das vanguardas artísticas faziam com versos recortados em papeizinhos tirados de forma aleatória de um saquinho. Parece não parece fazer muito sentido. O tema geral está aí, em algum lugar.
Resolvi apelar para o site Song Meaning, que na verdade trata-se do primeiro resultado na busca por “erasure chorus meaning“. Na thread onde se discute o significado da música, algumas pessoas inferem alguma coisa sobre destruição da natureza, mas um comentário em especial chamou a atenção: em um tom que cheira a teoria da conspiração, um comentarista afirma que o Erasure possa ter “previsto” o uso de “solar shields” para combater o aquecimento global nos primeiros versos do refrão. E aparentemente, para minha surpresa, é mesmo uma das possibilidades sendo consideradas.
A internet é um lugar maravilhoso.
[1] Retoma-se a análise na segunda estrofe da música, mas fome e meio ambiente são temas batidos na música engajada.
[2] Ainda que o baixo zoado do Paul Hook tenha sequestrado todo o som. E o microfone do Sumner estivesse baixo demais em relação ao teclado da Gillian. E a única pessoa ali fazendo algo 100% correto seja o Stephen Morris.
Foi dificíl terminar Mad Men, mas eu sabia que evetualmente acabaria acontecendo. Tenho postergado esse evento o máximo possível: desde 2013, quando comecei a ver a série, tenho tentado prolongar o ato de assisti-la o máximo possível. Pense, como no famoso slogan publicitário de uma famosa marca de cigarros cujo nome agora não me recordo, que assistir a série de Matthew Weiner era um raro prazer. Acompanhar uma série é um empreendimento custoso, demanda tempo e desgaste emocional, duas coisas que não tenho sobrando e que me sinto desperdiçar quando gasto com produções culturais medianas. E se há algo que Mad Men passa longe é da mediocridade.
Mad Men tem o protagonista mais odioso de que tenho notícia. Seu charme não me atinge [1], mas atinge a todos que conheço que acompanharam a série, sejam homens ou mulheres. Don Drapper é o cara de passado sofrido e presente atribulado por sua incrível capacidade de fazer bosta. Na minha humilde opinião, ele é apenas uma desculpa para a série existir. Ainda assim, a trama revolve no entorno de seu personagem de forma única. Ele próprio não é raso — ser odioso nunca impediu um personagem de ser interessante, afinal — e, ainda que seja uma máquina de fazer merda, é capaz de alguns atos nobres, que por vezes chegam tarde demais. Os defeitos de caráter de Don, no entanto, nos colocam diante dos nossos próprios. Don frequentemente se sabota no que diz respeito a timing: ele faz coisas imbecis em horas inapropriadas e é tão autocentrado que esquece que as relações à sua volta podem se deteriorar a ponto de o perdão já não ser mais possível. Mesmo porque “perdão” para ele consiste em uma indulgência que o permite, tão logo a poeira baixe, cometer os mesmos erros de sempre.
Mas uma série acontece para além de seus protagonistas, e é quase um pecado considerar os personagens que existem na história de Don meros coadjuvantes. O percurso que a série faz em suas trajetórias ao longo de dez anos — sete, em termos de temporadas — é progressivamente construído de forma coesa, mas imprevisível [2]. Mesmo quando o público tem evidências bastante explícitas dos rumos de um personagem, é possível se chocar e se surpreender quando a pista se torna fato. Exemplos são o suicídio de Lane Pryce e o crescimento exponencial da personagem de Elizabeth Moss, Peggy Olson — uma de minhas favoritas, principalmente por causa da identificação quase imediata que tenho com ela.
Assim que subiram os créditos do décimo quarto episódio da sétima temporada, tive dificuldade para entender que havia acabado. Veja, comecei a ver a série em 2013, houveram alguns percalços aí no que diz respeito ao meu compromisso comigo mesma de consumir produtos culturais, mas houve também um esforço deliberado de ir degustando tudo muito devagar. Eu teria terminado de ver tudo muito antes se o Netflix tivesse disponibilizado todos os episódios da última temporada de uma só vez, mas a AMC só havia liberado os sete primeiros, sem previsão alguma de quando chegariam os restantes. Uma amiga, que acompanhou a série na mesma época que eu e quase na mesma velocidade, chegou a esse limite e foi ver os demais episódios de forma, digamos, pouco oficial. Eu resisti e fui cuidar da vida — e desde então se passou algum tempo, pelo menos um ano. Quado retornei — e isso já era 2016, tempo considerável depois que a AMC já havia largado tudo no catálogo do Netflix —, decidi que precisaria de mais contexto para entender a trama, e resolvi assistir tudo de novo. E entre fruição irregular esporádica intercalada com outras séries que foram entrando na fila, levei quase um ano para (re)ver tudo. Foi a melhor coisa que eu poderia ter feito.
Por tudo o que é e significa, por sua profundidade narrativa que eu, espectadora pouco dedicada de produções audiovisuais em geral, e por fazer um retrato tão impactante de uma era, lugar e contexto histórico tão específicos, Mad Men é, de longe, a melhor série que já assisti em todos os meus quase trinta anos de vida, e duvido muito que possa ser superada. Pretendo assistir outras obras dos mesmos criadores, roteiristas, produtores, diretores e atores em busca do mesmo tipo de riqueza que é possível encontrar aqui. Não sou uma pessoa de eleger favoritos — não tenho livros, bandas ou filmes favoritos, apenas uma lista de referências que me marcaram e fazem parte do meu repertório cultural —, mas posso dizer que Mad Men ganhou meu coração. <3
Finalizo essa resenha com uma citação da resenha do Film Crit Hulk, livremente traduzida no bloco abaixo, e que também recomendo a leitura:
A vida inteira de Don é construída ao redor da mentira. Ele faz parecer que a elegância é fácil. Ele consegue falar através do silêncio. Ele consegue manipular e ver as pessoas a partir do que falta a elas. Ele transborda carisma. Resumindo: Don Drapper é a personificação de tudo o que é terrível a respeito da Publicidade… Mas não é só isso. Afinal, mesmo que a existência de Don Drapper seja uma realidade cínica — seu mantra não é sobre cinismo, é? Todo mundo pensou a respeito de porque Don é bom em Publicidade, mas ninguém realmente se perguntou porque ela é tão importante para ele. Por que ele é tão estranhamente apaixonado por ela? Por que ele consegue fazer as pessoas chorarem? Sério, por que Publicidade? […]
A razão porque Don Drapper é tão bom em Publicidade é porque ele precisa do que ela oferece mais do que qualquer um. E de fato, ele também acredita nela mais do que qualquer um.
Notas
[1] Me sinto insuficientemente heterossexual para isso.
[2] Mad Men é mestre na imprevisibilidade: nunca se sabe quando alguém pode perder o pé com um cortador de grama no alto de um edifício em Manhattan.
Antigamente, a melhor forma de se saber a classe social de uma pessoa sem fazer muitas perguntas era perguntar quantos televisores ela tinha em casa. Com essa simples pergunta era possível descobrir se ela morava na zona rural ou urbana, se tinha eletricidade em casa, as religiões a que ela talvez pertencesse, sua classe social e até o tamanho aproximado de sua residência. Sozinha, essa pergunta pode ou não fazer muito sentido a depender do caso, mas ela só comprova uma tendência se acompanhada de outras perguntas que abordem a questão por outros viéses.
É dos padrões que extraímos informação. É por isso que somos viciados neles: nosso cérebro se alimenta das conexões que as informações que jogamos dentro dele fazem. Se tais conexões são aleatórias a ponto de não fazerem sentido, pode ser pareidolia ou proposital nonsense. Há quem mapeie o céu e o relacione ao momento do nascimento, há quem brinque de só pisar na lajota preta, há quem desenvolva transtornos e não consiga fazer certas coisas sem a presença de certas condições aparentemente não relacionadas. Há quem desenvolva idiomas inteiros a partir dessa lógica.
Homens de chapéu têm 50% mais chances de serem babacas: nada mais anacrônico que um homem de chapéu.
Gente que tem exaustor em casa é rica: “bem de vida” para mim é qualquer um que ganhe o suficiente para pagar o próprio aluguel, independente de onde more. Se alguém pode se dar ao luxo de não empestear a casa com a fritura do último bife, essa pessoa é rica.
Canhotos são gente fina: canhotos têm o mundo todo contra eles. Canhotos entendem como a vida pode ser difícil nas pequenas coisas do dia a dia. Outra hipótese é que eu fico embasbacada com algo que eu acho impossível de ser feito: dominar a mão esquerda. Mas já ensinei a minha a pintar as unhas (não as dela mesma, claro).
Não confio em quem numera séculos com algarismos indo-arábicos: é uma tendência moderna, e como algumas tendências modernas — como por exemplo suprimir o trema da língua portuguesa —, são de muito mal gosto estético no que diz respeito ao desenho e às formas das letras, dos diacríticos e, conseqüentemente, ao desenho e ao entendimento das abstrações que chamamos “palavras”. Quem não liga pra esse tipo de coisa não merece falar comigo e nem com o meu anjo.
A categoria “Textinhos Para Ler no Celular” trocou de nome e agora se chama “Mobile First“. Não que alguém se importe. Para acessar todos os dois post disponíveis até o fechamento desta edição basta clicar naquele link lá, ó.
Não lembro muita coisa do meu Ensino Médio no que diz respeito a “Conteúdo Programático”, mas se lembro alguma coisa — como por exemplo agora, vendo aulas de nível avançado em Algoritmos no Coursera, entendendo lhufas, mas tendo altos flashbacks de situações traumáticas em provas —, os créditos vão para José Lauro, meu professor de Matemática do primeiro ano, e pra Jô, minha irmã mais velha, provavelmente a pessoa mais paciente (pelo menos comigo) desse mundo.
Por que o brasileiro faz pós-graduação no Brasil? Uma das respostas a essa pergunta é certamente poder pagar as contas. Uma pós-graduação não quer dizer nada a seu respeito enquanto pessoa na maior parte das vezes, mas mostra para quem paga seu salário que você se esforçou um mínimo possível para consegui-la. Mesmo que isso se resuma apenas a 1) conseguir comparecer às aulas sem ser reprovado por falta, e 2) ter conseguido manter dignidade suficiente para estar em dia (ou não) com os seus credores a ponto de não ter ido parar na cadeia (ainda).
Ter feito apenas este mínimo, no entanto, não significa que o pós-graduando é um folgado incapaz. “Apenas sobreviver” é um motivo bom o suficiente para qualquer ser humano realizar qualquer ação de qualquer natureza, dado o caráter da Vida, do Universo e Tudo o Mais em perspectiva na relação com o Grande Esquema das Coisas. “Apenas sobreviver” pode ser ótimo enquanto motivador. Eu, pessoalmente, acho que isso é algo que as pessoas deviam tentar fazer mais vezes.
Pra eu gostar de uma pessoa ela tem que gostar do mesmo imperador romano que eu.
Voltei com meu propósito de escrever um mínimo de 500 palavras por dia, e na segunda-feira bati a meta com folga: mais de 2 mil palavras, entre escrita em meio eletrônico e à mão. Obviamente, nos dias que se seguiram, a motivação arrefeceu.
Uma coisa que me incomoda sobremaneira é não ter um checklist de habilidades quando estou aprendendo alguma coisa nova, principalmente em se tratando de tecnologia. É aquela coisa: “OK, aprendi e solidifiquei conhecimento básico em X, agora faço o quê? Parto para onde? Como sei que estou seguindo um bom caminho? Quando vou saber se aprendi o suficiente? Que outras coisas preciso priorizar, e o que posso deixar de lado por enquanto, no meio de tanta linguagem, biblioteca e framework com documentação porca que surge todo dia?” Me sinto, na falta de uma palavra melhor, overwhelmed pelo tanto de coisa que me sinto incapaz de fazer em comparação com o tanto de coisa que faço com o pé nas costas.
E falando nisso, procurando por uma luz a respeito desse mesmo assunto no Google, me deparo com uma série de respostas-padrão dizendo que, quanto a ser mestre em uma habilidade específica, das duas uma: a) ninguém é bom o suficiente, e b) posso estar sofrendo da Síndrome do Impostor. Já fui informada a respeito dessa possibilidade, mas essa resposta nunca me agradou porque, bem, ela não me diz nada. A tal da Síndrome do Impostor diz basicamente que se você não se vê como bom o suficiente em algo, logo você só pode ser bom. Não importa que eu me sinta a própria definição de “estrangeiro em terra estranha” — ou “peixe fora d’água”, ou ainda “completamente ignorante” mesmo — em relação a determinado assunto. E se minha avaliação de mim mesma for acertada? Não existe um parâmetro, nenhuma evidência a que se agarrar para ter essa certeza, e sendo assim, para mim não passa de uma falácia assumir que sou boa em algo simplesmente porque não acho que sou. Essa, para ser mais específica.
O melhor texto que acabei eventualmente encontrando sobre tudo isso foi esse.